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Opinião
O cuidado para que nada fique como dantes
Teresa Cunha
Esquerda.net
2022-01-09

Na verdade, cuidar é um trabalho duro, incessante, incansável atribuído a quem menos conta na sociedade; é o epítome da exploração capitalista. 

Fotografia: Guilherme Yagui/Flickr

É praticamente inevitável começar por constatar que a pandemia que vivemos escancarou aquilo a que se está a chamar a crise dos cuidados. Afinal as nossas sociedades são tanto mais funcionais quanto mais cuidados prestam nos diversos âmbitos da vida. Quando uma cadeia de cuidado falha ou simplesmente desaparece, porque não tem ninguém para a prover, então uma série de atividades e de condições para a realização da dignidade entram em colapso e sucumbem. A meu ver, demonstra-se que a invisibilidade e a desqualificação de todas essas tarefas e responsabilidades são formas de como o capitalismo, em estreita aliança com o heteropatriarcado, transformaram essa infraestrutura vital em uma das suas mais potentes apropriações.

Esta apropriação tem significado várias coisas importantes que é preciso considerar se tivermos a intenção de levar a cabo uma reflexão sobre os cuidados que resulte na desmercantilização, despatriarcalização e na descolonização do nosso pensamento e das nossas práticas.

A primeira é talvez a mais difundida, já que as feministas há muito que têm alertado para ela colocando o dedo numa ferida aberta e antiga: cuidar não faz parte da ‘natureza’ feminina, não é a afirmação de qualquer tipo de feminilidade; não é uma essência da fêmea humana. Cuidar não é amor, é trabalho não pago, como disse a Silvia Federici. Na verdade, cuidar é um trabalho duro, incessante, incansável atribuído a quem menos conta na sociedade; é o epítome da exploração capitalista. Ao contrário das ladainhas neoliberais não há nada no cuidado que não seja altamente produtivo porque são os cuidados que sustentam as condições sem as quais a vida, em todas as suas formas, não seria possível de ser vivida e muito menos gostosa de se viver.  Então, a minha primeira afirmação é que os trabalhos dos cuidados são os mais produtivos de todos os trabalhos humanos.

A segunda ideia é a criação do mito que os cuidados se referem ao que se passa no espaço doméstico, ou são a sua recriação, em outros espaços e âmbitos, da domesticidade.

No meu entendimento, não há nada mais redutor do que essa forma de pensar os cuidados. Juntamente com duas companheiras, Cristina del Villar e Luísa Valle, temos vindo a pensar os cuidados a partir de três dimensões que nos parecem fundamentais. A primeira é a sua dimensão ontológica e para isso partimos da filosofia do uBuntu da África austral. Não se trata apenas de uma conexão social entre o ser que cada pessoa é e a sua interdependência com a comunidade que habita. É bastante mais do que isso; é a afirmação de que, sem cuidar e ser cuidada, a pessoa, prescinde da sua humanidade. Tal como o conceito Emakhuwa de wunnuwana, que significa crescer com, invoca que a minha humanidade é refém da humanidade de cada uma e de todas as outras pessoas e por isso cada uma/um tem que cuidar sempre da humanidade da outra/o. Tanto o uBuntu como o Wunnuwana são ontologias do cuidado nas quais as interdependências assumidas por todas e todos recriam mundos onde todas e todos têm lugar e dignidade. 

Os cuidados são todas as atividades que se geram numa sociedade que são capazes de salvaguardar a Terra como organismo vivo e complexo e de garantir aos seres humanos e não-humanos a partilha e a convivência nesta Casa comum. Assim o cuidado diz respeito a todas as relações sociais que protegem e criam vida em qualquer espaço e território. São as sociabilidades ecológicas, cooperativas, solidárias e que têm, no seu centro um ethos pró-comunal. Este social inscrito na realização dos cuidados é radicalmente potente pois concebe as relações sociais a partir de outras racionalidades que apontam para práticas transformadoras que realizam culturas do cuidado como centrais para realizar sociedades ecológica e socialmente responsáveis e justas.

Não menos importante é a dimensão epistemológica do cuidado. As práticas de quem cuida constituem saberes que foram sendo transmitidos de geração em geração sob a forma de receitas de cozinha, protocolos de segurança infantil e geriátrica, aconselhamento e mediação de conflitos, aproveitamento e conservação de alimentos, pedagogias, salubridade, gestão e organização, acompanhamento emocional, criação de animais, produção agrícola de alimentos, conhecimentos medicinais e terapêuticos, entre muitos outros que poderia aqui mencionar. O monstro das três cabeças – capitalismo, hetereopatriarcado e colonialismo - não só expulsou estes trabalhos do cuidado da economia como também expulsou da ciência todos estes conhecimentos e competências. Ridicularizando-os e remetendo-os para ‘coisas de mulheres’ tem permitido criar uma hierarquia epistemológica que acompanha a desvalorização social dos cuidados na sua dimensão social, política e ontológica.

Termino com uma afirmação que espero instigue uma boa polémica:
Vivendo nas ondas da pandemia a mais insurgente das reflexões sobre o cuidado é afirmar que a economia não parou. Pelo contrário, as economias dos cuidados que produzem a vida incessantemente, estão a funcionar na sua máxima capacidade para proteger, alimentar, abrigar, curar, cuidar, produzir alimentos, limpar, apoiar e amar. Esses sinais de que há alternativas estão em marcha, ainda que muitas vezes, silenciadas, desprezadas e fragilizadas pelo senso comum dominante. Porém, permanecem, acintosamente, presentes nos nossos dias de confinamento ou de medo por aquilo que ainda não entendemos e de como nos afetará o futuro. Por isso é preciso cuidar para nada fique como dantes!


Teresa Cunha, Investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Professora da Escola de Educação do Instituto Politécnico de Coimbra, Ativista Feminista.


 



Conteúdo Original por Esquerda.net