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Opinião
O Silêncio dos Intelectuais
Boaventura de Sousa Santos
JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias
2023-02-08

Os intelectuais não têm o monopólio da cultura, dos valores ou da verdade, e muito menos o monopólio do que se deva entender por qualquer desses “domínios do espírito”, como dantes se dizia. Mas também não podem demitir-se de denunciar o que, em seu entender, considerem ser destrutivo da cultura, dos valores e da verdade, sobretudo quando essa destruição ocorre supostamente em nome da cultura, dos valores e da verdade. Os intelectuais não podem impedir-se de saudar o sol antes que o dia nasça, mas também não podem deixar de avisar que muitas nuvens podem toldar o céu antes que a noite caia e impedir que se goze a claridade do dia.

Assistimos na Europa à (re)emergência alarmante de duas realidades destrutivas dos “domínios do espírito”: a destruição da democracia, com o crescimento das forças políticas de extrema-direita; e a destruição da paz com a naturalização da guerra. Qualquer destas destruições é legitimada pelos valores que visa destruir: a apologia do fascismo é feita em nome da democracia e a apologia da guerra, em nome da paz. Tudo isto é possível porque a iniciativa política e a presença mediática estão a ser entregues às forças conservadoras de direita ou de extrema-direita, as quais, ou advogam a destruição, ou consideram que a simples proposta de destruição será um meio eficaz para neutralizar a oposição das forças progressistas. Estas, por sua vez, insistem em advertir contra o perigo da guerra, advogar a paz e alertar para o perigo do fascismo, propondo medidas de protecção social para que a população sinta na bolsa e na convivência que a democracia é melhor que a ditadura. A destruição da paz e da democracia dá-se em geral pela constituição desigual e paralela de dois círculos de liberdades autorizadas, isto é, de liberdades de expressão e de acção acolhidas pelo poder mediático e político. O círculo das liberdades autorizadas para posições progressistas que defendem a paz e a democracia diminui cada vez mais, enquanto o círculo das liberdades autorizadas para posições conservadoras que fazem a apologia da guerra e da polarização fascista não cessa de crescer. Vejamos alguns dos principais sintomas deste vasto processo em curso.

  1. Os comentadores progressistas estão cada vez mais ausentes dos grandes média, enquanto os conservadores debitam semanalmente páginas inteiras de mediocridade estarrecedora.
  2. A guerra de informação sobre o conflito entre a Rússia e a Ucrânia apoderou-se de tal maneira da opinião publicada que até comentadores com algum bom senso conservador se submetem a ela com uma subserviência repugnante. No comentário semanal do canal de televisão SIC no passado dia 29 de Janeiro, o comentador Marques Mendes, em geral pessoa de bom senso dentro do campo conservador, afirmou mais ou menos isto: a Ucrânia tem de ganhar a guerra porque, se não ganhar, a Rússia invadirá outros países. Donde vem esta enormidade senão do consumo excessivo de desinformação? Não lhe terá ocorrido que a Rússia pós-soviética quis integrar a NATO e a UE e foi rejeitada, e que a expansão da NATO nas fronteiras da Rússia, contra o que foi prometido a Gorbachov, pode constituir uma legítima preocupação defensiva por parte da Rússia, ainda que seja ilegal a invasão da Ucrânia, como eu fiz questão de condenar desde a primeira hora? Não terá Marques Mendes por um momento pensado que uma potência nuclear confrontada com a eventualidade de derrota na guerra convencional pode recorrer a armas nucleares, e que isso pode causar uma catástrofe nuclear? E não se dá ele conta de que na guerra da Ucrânia se exploram dois nacionalismos para submeter a Europa à total dependência dos EUA e travar a expansão da China, o país com quem os EUA estão verdadeiramente em guerra?
  3. De modo sub-reptício, a ideologia anti-comunista que dominou o mundo ocidental nos últimos oitenta anos está a ser reciclada para fomentar até à histeria o ódio anti-russo, mesmo sendo sabido que Putin é um líder autocrático, amigo da direita e da extrema-direita europeias. Proíbem-se artistas, músicos e desportistas russos, eliminam-se cursos sobre a cultura e literatura russa, tão europeias quanto a francesa. Na primeira reunião internacional do P.E.N. Clube depois da Primeira Guerra Mundial, realizada em Maio de 1923, foi proibida a participação de escritores alemães, como parte da estratégia de humilhação da Alemanha no Tratado de Versalhes de 1919. A única voz discordante foi a de Romain Rolland, Prémio Nobel da Literatura em 1915. Ele, que tanto escrevera contra a guerra, e especificamente contra os crimes de guerra dos alemães, teve a coragem de afirmar, “em nome do universalismo intelectual”: “não submeto o meu pensamento às flutuações tirânicas e dementes da política”.
  4. A democracia está a ser tão esvaziada de conteúdo que pode ser defendida instrumentalmente pelos que se servem dela para a destruir, enquanto os que servem a democracia para a fortalecer contra o fascismo são considerados esquerdistas radicais. No plano internacional, foi unânime o coro ocidental para celebrar os acontecimentos da praça Maidan de Kiev de 2014, onde afinal a guerra de hoje começou. Apesar de as bandeiras de organizações nazis estarem bem visíveis nos protestos, apesar de a fúria popular se dirigir contra um presidente, Viktor Yanukovych, democraticamente eleito, apesar de as escutas telefónicas terem revelado que a neoconservadora dos EUA, Victoria Nuland, indicara os nomes de quem assumiria o poder em caso de vitória, incluindo o de uma cidadã norte-americana, Natalie Jaresko, que viria a ser nomeada nova Ministra das Finanças…da Ucrânia, apesar de tudo isto, estes acontecimentos, que foram um golpe bem orquestrado para afastar um presidente pró-russo e transformar a Ucrânia num protectorado norte-americano, foi celebrado em todo o Ocidente como uma vibrante vitória da democracia. E nada disto foi sequer tão absurdo quanto o facto de um deputado da oposição venezuelana, Juan Guaidó, se ter auto-proclamado Presidente interino da Venezuela numa praça de Caracas em 2019, e isso ter bastado para os EUA e muitos países da UE (incluindo Portugal) o terem reconhecido como tal. Em Dezembro de 2022, foi a própria oposição venezuelana a pôr termo a esta farsa.
  5. A dualidade de critérios para julgar o que se passa no mundo assume proporções aberrantes e é exercida quase automaticamente para fortalecer os apologistas da guerra, estigmatizar os partidos de esquerda e normalizar os fascistas. Os exemplos são tantos que custa seleccioná-los. No plano interno, dou dois exemplos. O comportamento arruaceiro dos deputados do Chega no parlamento é muito semelhante ao comportamento do partido Nazi no Reichtag desde a sua entrada no parlamento alemão nos primeiros anos da década de 1920. Houve tentativas para os travar, mas a iniciativa política pertencia-lhes e as condições económicas favoreciam-nos. Em Maio de 1933, já ocorria a primeira queima de livros em Berlim. Até quando esperaremos em Portugal? O segundo exemplo. Está em curso um processo para derrubar o governo socialista. Seguindo uma orientação da direita global muito apadrinhada pelas instituições de contra-insurgência dos EUA, os governos de esquerda que não puderem ser derrubados por golpes brandos devem ser desgastados por acusações de corrupção. Em Portugal, aparentemente, só há corrupção no PS, e os mesmos jornais que derrubaram José Sócrates procuram derrubar António Costa. Não faço nenhum juízo sobre o que fez ou não fez José Sócrates. Apenas constato que ele foi condenado nas páginas dos jornais e nos noticiários da televisão muito antes de ser condenado pelos tribunais, o que até agora, quase oito anos depois, ainda não aconteceu. Até ao momento, António Costa tem-se revelado ser um osso mais difícil de roer pela direita, mas todos os seus ministros, até prova em contrário, são considerados corruptos.

No plano internacional refiro dois exemplos gritantes. É hoje praticamente assente que a explosão dos gasodutos do Nord Stream, em Setembro de 2022, foi obra dos EUA (como, aliás, tinha sido prometido por Joe Biden), com a eventual colaboração de aliados. Se foi ou não foi, deveria ser prontamente investigado por uma comissão internacional independente. O que parece evidente é que a parte prejudicada, a Rússia, não tinha nenhum interesse em destruir uma infraestrutura que lhe custara cerca da 20 mil milhões de dólares. Estamos perante um crime grave que, a ser verdade, configura uma acto de terrorismo de Estado. Deveria ser do máximo interesse para os EUA, o Estado que se afirma como defensor da democracia global, averiguar o que se passou. Em vez disso, pesa sobre aquele acto terrorista o mais profundo silêncio.

O segundo exemplo. Intensifica-se a violência da ocupação colonial da Palestina por parte de Israel. Desde o início do ano, Israel já matou 35 Palestianos; no dia 26 de Janeiro fez um raid no campo de refugiados de Jenin no West Bank e matou mais 10 pessoas, incluindo 2 crianças. Um dia depois, um jovem Palestiniano matou 7 pessoas ao lado da sinagoga de um colonato israelita na secção oriental de Jerusalém, ilegalmente ocupada por Israel. A violência existe dos dois lados, mas a desproporção é brutal, e muitos actos do terrorismo do Estado de Israel (por vezes cometidos impunemente por colonos ou por militares nos checkpoints) não chegam sequer a ser noticiados. Não há enviados dos média ocidentais para relatar o que se passa nos territórios ocupados, onde a maior violência ocorre. Não temos imagens lancinantes de sofrimento e morte do lado palestiniano (excepto imagens furtivas de telemóvel). A comunidade internacional e o mundo árabe nada dizem. Apesar da imensa desproporção dos meios bélicos, não há nenhum movimento para enviar equipamento bélico eficaz para a Palestina. A Europa, que no holocausto tantos Judeus vitimou e está, por isso, na origem remota dos crimes cometidos contra a Palestina, mostra hoje uma cumplicidade odiosa com Israel. A UE afadiga-se neste momento para criar um tribunal para julgar os crimes de guerra. Mas, hipocritamente, só os crimes cometidos pelos russos.

Perante tudo isto, talvez o silêncio mais profundo seja o dos intelectuais. Ao contrário do que aconteceu no início do século XX, não há declarações retumbantes de conhecidos intelectuais pela paz ou pela “independência de espírito” e em defesa da democracia. Por que se terão calado? Haverá ainda intelectuais, ou o que resta é uma pobre clericultura?



Conteúdo Original por JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias