Os intelectuais não têm o monopólio da cultura, dos valores ou da verdade, e muito menos o monopólio do que se deva entender por qualquer desses “domínios do espírito”, como dantes se dizia. Mas também não podem demitir-se de denunciar o que, em seu entender, considerem ser destrutivo da cultura, dos valores e da verdade, sobretudo quando essa destruição ocorre supostamente em nome da cultura, dos valores e da verdade. Os intelectuais não podem impedir-se de saudar o sol antes que o dia nasça, mas também não podem deixar de avisar que muitas nuvens podem toldar o céu antes que a noite caia e impedir que se goze a claridade do dia.
Assistimos na Europa à (re)emergência alarmante de duas realidades destrutivas dos “domínios do espírito”: a destruição da democracia, com o crescimento das forças políticas de extrema-direita; e a destruição da paz com a naturalização da guerra. Qualquer destas destruições é legitimada pelos valores que visa destruir: a apologia do fascismo é feita em nome da democracia e a apologia da guerra, em nome da paz. Tudo isto é possível porque a iniciativa política e a presença mediática estão a ser entregues às forças conservadoras de direita ou de extrema-direita, as quais, ou advogam a destruição, ou consideram que a simples proposta de destruição será um meio eficaz para neutralizar a oposição das forças progressistas. Estas, por sua vez, insistem em advertir contra o perigo da guerra, advogar a paz e alertar para o perigo do fascismo, propondo medidas de protecção social para que a população sinta na bolsa e na convivência que a democracia é melhor que a ditadura. A destruição da paz e da democracia dá-se em geral pela constituição desigual e paralela de dois círculos de liberdades autorizadas, isto é, de liberdades de expressão e de acção acolhidas pelo poder mediático e político. O círculo das liberdades autorizadas para posições progressistas que defendem a paz e a democracia diminui cada vez mais, enquanto o círculo das liberdades autorizadas para posições conservadoras que fazem a apologia da guerra e da polarização fascista não cessa de crescer. Vejamos alguns dos principais sintomas deste vasto processo em curso.
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Os comentadores progressistas estão cada vez mais ausentes dos grandes média, enquanto os conservadores debitam semanalmente páginas inteiras de mediocridade estarrecedora.
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A guerra de informação sobre o conflito entre a Rússia e a Ucrânia apoderou-se de tal maneira da opinião publicada que até comentadores com algum bom senso conservador se submetem a ela com uma subserviência repugnante. No comentário semanal do canal de televisão SIC no passado dia 29 de Janeiro, o comentador Marques Mendes, em geral pessoa de bom senso dentro do campo conservador, afirmou mais ou menos isto: a Ucrânia tem de ganhar a guerra porque, se não ganhar, a Rússia invadirá outros países. Donde vem esta enormidade senão do consumo excessivo de desinformação? Não lhe terá ocorrido que a Rússia pós-soviética quis integrar a NATO e a UE e foi rejeitada, e que a expansão da NATO nas fronteiras da Rússia, contra o que foi prometido a Gorbachov, pode constituir uma legítima preocupação defensiva por parte da Rússia, ainda que seja ilegal a invasão da Ucrânia, como eu fiz questão de condenar desde a primeira hora? Não terá Marques Mendes por um momento pensado que uma potência nuclear confrontada com a eventualidade de derrota na guerra convencional pode recorrer a armas nucleares, e que isso pode causar uma catástrofe nuclear? E não se dá ele conta de que na guerra da Ucrânia se exploram dois nacionalismos para submeter a Europa à total dependência dos EUA e travar a expansão da China, o país com quem os EUA estão verdadeiramente em guerra?
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De modo sub-reptício, a ideologia anti-comunista que dominou o mundo ocidental nos últimos oitenta anos está a ser reciclada para fomentar até à histeria o ódio anti-russo, mesmo sendo sabido que Putin é um líder autocrático, amigo da direita e da extrema-direita europeias. Proíbem-se artistas, músicos e desportistas russos, eliminam-se cursos sobre a cultura e literatura russa, tão europeias quanto a francesa. Na primeira reunião internacional do P.E.N. Clube depois da Primeira Guerra Mundial, realizada em Maio de 1923, foi proibida a participação de escritores alemães, como parte da estratégia de humilhação da Alemanha no Tratado de Versalhes de 1919. A única voz discordante foi a de Romain Rolland, Prémio Nobel da Literatura em 1915. Ele, que tanto escrevera contra a guerra, e especificamente contra os crimes de guerra dos alemães, teve a coragem de afirmar, “em nome do universalismo intelectual”: “não submeto o meu pensamento às flutuações tirânicas e dementes da política”.
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A democracia está a ser tão esvaziada de conteúdo que pode ser defendida instrumentalmente pelos que se servem dela para a destruir, enquanto os que servem a democracia para a fortalecer contra o fascismo são considerados esquerdistas radicais. No plano internacional, foi unânime o coro ocidental para celebrar os acontecimentos da praça Maidan de Kiev de 2014, onde afinal a guerra de hoje começou. Apesar de as bandeiras de organizações nazis estarem bem visíveis nos protestos, apesar de a fúria popular se dirigir contra um presidente, Viktor Yanukovych, democraticamente eleito, apesar de as escutas telefónicas terem revelado que a neoconservadora dos EUA, Victoria Nuland, indicara os nomes de quem assumiria o poder em caso de vitória, incluindo o de uma cidadã norte-americana, Natalie Jaresko, que viria a ser nomeada nova Ministra das Finanças…da Ucrânia, apesar de tudo isto, estes acontecimentos, que foram um golpe bem orquestrado para afastar um presidente pró-russo e transformar a Ucrânia num protectorado norte-americano, foi celebrado em todo o Ocidente como uma vibrante vitória da democracia. E nada disto foi sequer tão absurdo quanto o facto de um deputado da oposição venezuelana, Juan Guaidó, se ter auto-proclamado Presidente interino da Venezuela numa praça de Caracas em 2019, e isso ter bastado para os EUA e muitos países da UE (incluindo Portugal) o terem reconhecido como tal. Em Dezembro de 2022, foi a própria oposição venezuelana a pôr termo a esta farsa.
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A dualidade de critérios para julgar o que se passa no mundo assume proporções aberrantes e é exercida quase automaticamente para fortalecer os apologistas da guerra, estigmatizar os partidos de esquerda e normalizar os fascistas. Os exemplos são tantos que custa seleccioná-los. No plano interno, dou dois exemplos. O comportamento arruaceiro dos deputados do Chega no parlamento é muito semelhante ao comportamento do partido Nazi no Reichtag desde a sua entrada no parlamento alemão nos primeiros anos da década de 1920. Houve tentativas para os travar, mas a iniciativa política pertencia-lhes e as condições económicas favoreciam-nos. Em Maio de 1933, já ocorria a primeira queima de livros em Berlim. Até quando esperaremos em Portugal? O segundo exemplo. Está em curso um processo para derrubar o governo socialista. Seguindo uma orientação da direita global muito apadrinhada pelas instituições de contra-insurgência dos EUA, os governos de esquerda que não puderem ser derrubados por golpes brandos devem ser desgastados por acusações de corrupção. Em Portugal, aparentemente, só há corrupção no PS, e os mesmos jornais que derrubaram José Sócrates procuram derrubar António Costa. Não faço nenhum juízo sobre o que fez ou não fez José Sócrates. Apenas constato que ele foi condenado nas páginas dos jornais e nos noticiários da televisão muito antes de ser condenado pelos tribunais, o que até agora, quase oito anos depois, ainda não aconteceu. Até ao momento, António Costa tem-se revelado ser um osso mais difícil de roer pela direita, mas todos os seus ministros, até prova em contrário, são considerados corruptos.
No plano internacional refiro dois exemplos gritantes. É hoje praticamente assente que a explosão dos gasodutos do Nord Stream, em Setembro de 2022, foi obra dos EUA (como, aliás, tinha sido prometido por Joe Biden), com a eventual colaboração de aliados. Se foi ou não foi, deveria ser prontamente investigado por uma comissão internacional independente. O que parece evidente é que a parte prejudicada, a Rússia, não tinha nenhum interesse em destruir uma infraestrutura que lhe custara cerca da 20 mil milhões de dólares. Estamos perante um crime grave que, a ser verdade, configura uma acto de terrorismo de Estado. Deveria ser do máximo interesse para os EUA, o Estado que se afirma como defensor da democracia global, averiguar o que se passou. Em vez disso, pesa sobre aquele acto terrorista o mais profundo silêncio.
O segundo exemplo. Intensifica-se a violência da ocupação colonial da Palestina por parte de Israel. Desde o início do ano, Israel já matou 35 Palestianos; no dia 26 de Janeiro fez um raid no campo de refugiados de Jenin no West Bank e matou mais 10 pessoas, incluindo 2 crianças. Um dia depois, um jovem Palestiniano matou 7 pessoas ao lado da sinagoga de um colonato israelita na secção oriental de Jerusalém, ilegalmente ocupada por Israel. A violência existe dos dois lados, mas a desproporção é brutal, e muitos actos do terrorismo do Estado de Israel (por vezes cometidos impunemente por colonos ou por militares nos checkpoints) não chegam sequer a ser noticiados. Não há enviados dos média ocidentais para relatar o que se passa nos territórios ocupados, onde a maior violência ocorre. Não temos imagens lancinantes de sofrimento e morte do lado palestiniano (excepto imagens furtivas de telemóvel). A comunidade internacional e o mundo árabe nada dizem. Apesar da imensa desproporção dos meios bélicos, não há nenhum movimento para enviar equipamento bélico eficaz para a Palestina. A Europa, que no holocausto tantos Judeus vitimou e está, por isso, na origem remota dos crimes cometidos contra a Palestina, mostra hoje uma cumplicidade odiosa com Israel. A UE afadiga-se neste momento para criar um tribunal para julgar os crimes de guerra. Mas, hipocritamente, só os crimes cometidos pelos russos.
Perante tudo isto, talvez o silêncio mais profundo seja o dos intelectuais. Ao contrário do que aconteceu no início do século XX, não há declarações retumbantes de conhecidos intelectuais pela paz ou pela “independência de espírito” e em defesa da democracia. Por que se terão calado? Haverá ainda intelectuais, ou o que resta é uma pobre clericultura?
Conteúdo Original por JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias