O número especial Epistemologias do sul e diálogos interculturais tem como objetivo fundamental trazer a público experiências que estão sendo realizadas no Sul global (epistêmico e não geográfico) acerca de novas possibilidades que estão em construção,como projetos políticos, sociais e epistemológicos, seja viamovimentos sociais, seja viaprojetos educacionais vinculados aos povos que foram silenciados e subalternizados em meio àcriação do sistema-mundo colonial-moderno.
Durante séculos, sobretudo a partir do que convencionou-se classificar como modernidade, os conhecimentos outros, outras racionalidades e outras sexualidades foram apropriadas, racializadas, subalternizadas e silenciadas pelo logocentrismoe grafocentrismoocidentais. Mesmo diante desse processo extremamente violento, concomitantemente àsua constituição teve início um vigoroso processo de resistência,que pode ser observado nas manifestações de luta dos povos submetidos ao projeto colonizador.
Esse número apresentaas experiências que estão em curso na América Latina tendo em vista as discussões realizadas em torno das Epistemologias do Sul e da Interculturalidade Crítica.
Fazem parte do Dossiê duas entrevistas,disponíveis na revista no formato Youtube, uma com Ailton Krenak e outra com Gersem Baniwa,e quatro artigos. Nas entrevistas,as duas lideranças indígenas apresentam,de forma dialogada com os organizadores do Dossiê, suas impressões e percepções sobre a importância da Educação Intercultural para os povos indígenas brasileiros. Destacam as possibilidades eoslimites inerentes àeducação intercultural, enfatizando a necessidade incontornável da presença dos conhecimentos indígenas na educação como um todo, mas revelando também que esta é apenas parte da luta dos povos indígenas e que,sem a defesa intransigente de seus territórios e cosmologias, a educação intercultural perde o seu sentido.
Os artigos apresentados no Dossiê destacam experiências com a educação em diferentes contextos latino-americanos. O primeiro artigo, “Diálogo intercultural no agreste e sertão pernambucanos: o Povo Pankará e os/as Artesãos/ãs do Alto do Moura”, deJaqueline Barbosa da Silva, Everaldo Fernandes da Silva, Maria Luciete LopeseWilliam Francisco da Silva,apresentao diálogo intercultural entre as cosmovisões dos/as artesãos/ãs do Alto do Moura –Caruaru/PE e do Povo Pankará, cuja percepção é resultado dos desdobramentos do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência para a Diversidade (PibidDiversidade), do projeto de pesquisa Professores Indígenas de Pernambuco: formação, pesquisa e prática pedagógica, das rodas de diálogo com os referidos ceramistas. De acordo com os autores,o acesso às cosmovisões do Povo Pankará e os contatos intersubjetivos dos/as artesãos/ãs do Alto do Moura,em Pernambuco,revelaram as práticas educativas e a produção do conhecimento popular,promovendo um olhar crítico-propositivo noe dogrupo dos/asparticipantesindígenas e artesãos/ãs.
No segundo artigo, “Resgatando o sentido da profissão docente por meio de tertúlias pedagógicas dialógicas: vozes de professores da Serra Norte do México”, Alfonso Rodríguez OramaseJosé Ramón Flechaapresentam e descrevem como,por meio das tertúlias pedagógicas dialógicas–que são espaços de formação baseados na aprendizagem dialógica–,os professores podem acederàs evidências científicas do impacto social das ações educativas,que permitem contrariar a situação de desencanto, apatia e perda de sentido em relação à profissão de professor. O artigo pesquisoucomo as tertúlias pedagógicas dialógicas têm contribuído para que os professores de Huauchinango, no México,recuperem o sentido transformadorda educação e se re-encantem com a profissão docente, colaborando positivamentecomsua prática educacional em suas escolas e para o seu bem-estar pessoal.
No terceiro artigo, “Histórias da Covid-19: reflexões sobre violências desveladas na pandemia e o potencial das plantas-pessoas-espíritos”, Maria do Socorro Pimentel da Silva, Alexandre Herbetta, Taís Pocuhto, Cintia Guajajar, Antônio Jukureakireu Boe, Asariku Waura, Muni KayabiMehinaku Kemenha, José Yudjà, Clarice Krikati, Agostinho Eibajiwu, Makatu Kayabie Umya Karajátrazem as percepções indígenas e não indígenas acerca da expansão da pandemia de Covid-19 nos territórios originários. Ao refletirema partir das cosmovisões indígenas sobre o que está acontecendo no mundoatualmente, destacamarelação entre as políticas públicas indigenistas e as práticas comunitárias entre as populações indígenas,tendo em vista a problematização vinculada ao binarismo cultura/natureza presente na cultura ocidental, resultando na ausência da espiritualidade emsuas práticas.
No quarto e último artigo do Dossiê, “Desobediência epistêmica: nuances de um movimento do lado de cá”, as autorasSélvia Carneiro de Limae Ludmila Stival Cardoso analisam algumas formasde resistência indígena, particularmente a literatura e a Utopia Chixi como alternativas de questionamento, de resistência e de re-existência em relação às lógicas de dominação e subalternização dos povos indígenas,realizadas a partir da invasão da América.
Nos primeiros dias de janeiro de 2020, Maria Paula de Meneses, minha supervisora de pós-doutorado, e eu, Elias Nazareno, discutimos e deliberamos,no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra,acerca da produção desse Dossiê, cuja propostainicialera muito mais ampla e visava abarcar experiências realizadas também na África, Ásia e Europa. Conversei com a editora da revista Articulando e Construindo Saberes, Maria do Socorro Pimentel da Silva, sobre a proposta e ela,com sua generosidade e acuidade intelectualde sempre, prontamente atendeu ao nosso pedido,colocando a revista ànossa disposição. Poucos meses depois, entretanto, o mundo foi surpreendido com o avanço imparável da pandemia de Covid-19. Portugal, depois da Itália e Espanha,foi igualmente atingido,de forma ainda mais contundente,pelos efeitos da pandemia,a partir de março de 2020.
Esse contexto de crise incontornável me obrigou a retornar ao Brasil em março de 2020,apesar da previsão do meu projeto serque eu lá ficasse até julho de 2020, e grande parte do trabalho que havíamos planejado para a realização do Dossiê ficou prejudicada. Ao regressar ao Brasil, os fatos iriam revelar que a pandemia seria muito mais dura no meu país, sobretudo pela ausência de articulaçãoem termos de políticas públicasde combate a ela por parte do governo brasileiro. Apopulação brasileira ficou à mercê da ingovernabilidade e, portanto, da ausência de uma política nacional de enfrentamento à pandemia. Como resultado, em poucos meses o Brasil rapidamente se transformou em um dos epicentros da pandemia em âmbito mundial.
Foram muitas e incontáveis as vítimas dessa tragédia. Centenas de milhares de pessoas perderam suas vidas. Dentre essas pessoas, infelizmente,está a minha grande amiga e colega do curso de Licenciatura em Educação Intercultural da Universidade Federal de Goiás (UFG)e editora desta revista, Maria do Socorro Pimentel da Silva. Nós não poderíamos deixar de dedicar esse Dossiê a ela.Socorro foi e,segue sendo, uma das mulheres mais corajosas e dedicadas àeducação intercultural indígenano Brasil. Ela é, inclusive autora de um dos artigos que dele fazem parte. Suas ideias, escritos e,principalmente,sua coragem e vontade seguirão vivos entre nós.
Txoitotuke, Socorro!
Obrigado, Socorro!
Conteúdo Original por Revista Articulando e Construindo Saberes: v. 6 (2021)