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Artigo
Dossiê: Epistemologias do sul e diálogos interculturais.
Elias Nazareno, Maria Paula Meneses
Revista Articulando e Construindo Saberes: v. 6 (2021)
2021-02-02

O número especial Epistemologias do sul e diálogos interculturais tem como objetivo fundamental trazer a público experiências que estão sendo realizadas no Sul global (epistêmico e  não  geográfico)  acerca  de  novas  possibilidades  que  estão  em  construção,como  projetos políticos, sociais e epistemológicos, seja viamovimentos sociais, seja viaprojetos educacionais vinculados aos povos que foram silenciados e subalternizados em meio àcriação do sistema-mundo colonial-moderno.

Durante   séculos,   sobretudo   a   partir   do   que   convencionou-se   classificar   como modernidade,  os  conhecimentos  outros,  outras  racionalidades  e  outras  sexualidades  foram apropriadas,  racializadas,  subalternizadas  e  silenciadas  pelo  logocentrismoe  grafocentrismoocidentais.  Mesmo  diante  desse  processo  extremamente  violento,  concomitantemente àsua constituição  teve  início  um  vigoroso  processo  de  resistência,que  pode  ser  observado  nas manifestações de luta dos povos submetidos ao projeto colonizador.

Esse número apresentaas experiências que estão em curso na América Latina tendo em vista  as  discussões  realizadas  em  torno  das  Epistemologias  do  Sul  e da  Interculturalidade Crítica.

Fazem parte do Dossiê duas entrevistas,disponíveis na revista no formato Youtube, uma com  Ailton  Krenak  e  outra  com  Gersem  Baniwa,e  quatro  artigos. Nas  entrevistas,as  duas lideranças  indígenas  apresentam,de  forma  dialogada  com  os  organizadores  do  Dossiê,  suas impressões e percepções sobre a importância da Educação Intercultural para os povos indígenas brasileiros. Destacam  as  possibilidades  eoslimites  inerentes àeducação  intercultural, enfatizando a necessidade incontornável da presença dos conhecimentos indígenas na educação como um todo, mas revelando também que esta é apenas parte da luta dos povos indígenas e que,sem a defesa intransigente de seus territórios e cosmologias, a educação intercultural perde o seu sentido.

Os artigos apresentados no Dossiê destacam experiências com a educação em diferentes contextos  latino-americanos. O  primeiro  artigo, “Diálogo  intercultural  no  agreste  e  sertão pernambucanos: o Povo Pankará e os/as Artesãos/ãs do Alto do Moura”, deJaqueline Barbosa da  Silva,  Everaldo  Fernandes  da  Silva,  Maria  Luciete  LopeseWilliam  Francisco  da  Silva,apresentao diálogo intercultural entre as cosmovisões dos/as artesãos/ãs do Alto do Moura –Caruaru/PE e do Povo Pankará, cuja percepção é resultado dos desdobramentos do Programa Institucional  de  Bolsas  de  Iniciação  à  Docência  para  a  Diversidade  (PibidDiversidade), do projeto  de  pesquisa  Professores  Indígenas  de  Pernambuco:  formação,  pesquisa  e  prática pedagógica,  das  rodas  de  diálogo  com  os  referidos  ceramistas.  De  acordo  com  os  autores,o acesso às cosmovisões do Povo Pankará e os contatos intersubjetivos dos/as artesãos/ãs do Alto do  Moura,em  Pernambuco,revelaram  as  práticas  educativas  e  a  produção  do  conhecimento popular,promovendo um olhar crítico-propositivo noe dogrupo dos/asparticipantesindígenas e artesãos/ãs.

No segundo artigo, “Resgatando  o  sentido  da  profissão  docente  por  meio  de  tertúlias pedagógicas dialógicas: vozes de professores da Serra Norte do México”, Alfonso Rodríguez OramaseJosé  Ramón  Flechaapresentam  e  descrevem  como,por  meio  das tertúlias pedagógicas dialógicas–que são espaços de formação baseados na aprendizagem dialógica–,os professores podem acederàs evidências científicas do impacto social das ações educativas,que  permitem  contrariar a  situação  de  desencanto,  apatia  e  perda  de  sentido  em  relação  à profissão  de  professor.  O  artigo  pesquisoucomo  as  tertúlias  pedagógicas  dialógicas  têm contribuído  para  que  os  professores  de  Huauchinango,  no  México,recuperem  o  sentido transformadorda   educação   e   se   re-encantem com a   profissão   docente, colaborando positivamentecomsua prática educacional em suas escolas e para o seu bem-estar pessoal.

No  terceiro  artigo, “Histórias  da  Covid-19:  reflexões  sobre  violências  desveladas  na pandemia  e  o  potencial  das  plantas-pessoas-espíritos”,  Maria  do  Socorro  Pimentel  da  Silva, Alexandre Herbetta, Taís Pocuhto, Cintia Guajajar, Antônio Jukureakireu Boe, Asariku Waura, Muni KayabiMehinaku Kemenha, José Yudjà, Clarice Krikati, Agostinho Eibajiwu, Makatu Kayabie Umya Karajátrazem as percepções indígenas e não indígenas acerca da expansão da pandemia  de  Covid-19  nos  territórios  originários. Ao  refletirema  partir  das  cosmovisões indígenas  sobre  o  que  está  acontecendo  no  mundoatualmente,  destacamarelação  entre  as políticas públicas indigenistas e as práticas comunitárias entre as populações indígenas,tendo em  vista  a  problematização  vinculada  ao  binarismo  cultura/natureza  presente  na  cultura ocidental, resultando na ausência da espiritualidade emsuas práticas.

No quarto  e  último  artigo  do  Dossiê, “Desobediência  epistêmica:  nuances  de  um movimento  do  lado  de  cá”,  as  autorasSélvia  Carneiro  de  Limae  Ludmila  Stival  Cardoso analisam algumas formasde resistência indígena, particularmente a literatura e a Utopia Chixi como alternativas de questionamento, de resistência e de re-existência em relação às lógicas de dominação e subalternização dos povos indígenas,realizadas a partir da invasão da América.

Nos primeiros dias de janeiro de 2020, Maria Paula de Meneses, minha supervisora de pós-doutorado, e eu, Elias Nazareno, discutimos e deliberamos,no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra,acerca da produção desse Dossiê, cuja propostainicialera muito mais ampla e visava abarcar experiências realizadas também na África, Ásia e Europa. Conversei  com  a editora  da  revista  Articulando  e  Construindo  Saberes,  Maria  do  Socorro Pimentel  da  Silva, sobre a  proposta  e  ela,com  sua  generosidade  e  acuidade  intelectualde sempre, prontamente atendeu ao nosso pedido,colocando a revista ànossa disposição. Poucos meses depois, entretanto, o mundo foi surpreendido com o avanço imparável da pandemia de Covid-19. Portugal, depois da Itália e Espanha,foi igualmente atingido,de forma ainda mais contundente,pelos efeitos da pandemia,a partir de março de 2020.

Esse contexto de crise incontornável me obrigou a retornar ao Brasil em março de 2020,apesar da previsão do meu projeto serque  eu lá ficasse  até julho de 2020, e grande parte do trabalho que havíamos planejado para a realização do Dossiê ficou prejudicada. Ao regressar ao Brasil, os fatos iriam revelar que a pandemia seria muito mais dura no meu país, sobretudo pela  ausência  de  articulaçãoem  termos  de  políticas  públicasde  combate  a  ela  por  parte  do governo brasileiro. Apopulação brasileira ficou à mercê da ingovernabilidade e, portanto, da ausência de uma política nacional de enfrentamento à pandemia. Como resultado, em poucos meses  o  Brasil  rapidamente  se  transformou  em  um  dos  epicentros  da  pandemia  em âmbito mundial.

Foram muitas e incontáveis as vítimas dessa tragédia. Centenas de milhares de pessoas perderam suas vidas. Dentre essas pessoas, infelizmente,está a minha grande amiga e colega do curso de Licenciatura em Educação Intercultural da Universidade Federal de Goiás (UFG)e  editora  desta  revista,  Maria  do  Socorro  Pimentel  da  Silva.  Nós  não  poderíamos  deixar  de dedicar  esse  Dossiê  a  ela.Socorro  foi  e,segue  sendo,  uma  das  mulheres  mais  corajosas  e dedicadas àeducação intercultural indígenano Brasil. Ela é, inclusive autora de um dos artigos que dele fazem parte. Suas ideias, escritos e,principalmente,sua coragem e vontade seguirão vivos entre nós.

Txoitotuke, Socorro!

Obrigado, Socorro!

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Conteúdo Original por Revista Articulando e Construindo Saberes: v. 6 (2021)