Uma mulher foi atropelada por um automóvel em Fort-de-France quando Frantz Fanon tinha 14 anos.Naquela época, as autópsias eram feitas na catedral daquela cidade.Fanon convidou seus amigos para acompanhá-lo em uma expedição para testemunhar a autópsia através de uma janela aberta da igreja.Seus amigos recusaram.Então, Fanon foi por conta própria.Ele ficou enojadocom o que viu.Não era o sangue que o incomodava.Era o procedimento impessoal e prático.Ali a mulher jazia não mais como pessoa, mas como cadáver.Fanon não separaria a pessoa do cadáver, a mulher da carne dissecada na mesa.Ele testemunhou degradação, indignidade, humanidade ausente no processo, mas não em seu coração.O menino encontrou sua humanidade e, por meio de sua convicção, seu humanismo.A separação da pessoa do corpo não é uma característica de muitas línguas não europeias, e não foi historicamente assim para muitas línguas europeias.O processo de pessoas se tornando “coisas” foi crucial para as práticas históricas de colonização, escravização e violência.A linguagem ativa de muitas línguas crioulizadas no Caribe e nas Américas, além daquelas onde quer que a colonização e o comércio fossem, tinham como premissa a vitalidade.O corpo vivido, por assim dizer, é relacional e dinâmico, e assim as reduções à propriedade e às coisas sempre estiveram em conflito com o que estava no cerne do discursoe seu alcance comunicativo na vida social.
Embora Fanon fosse um falante eloquente do francês parisiense, a linguagem orgânica de sua infância –o crioulo –não estava apenas ao lado do francês hegemônico imposto e aspirado, mas também um desafio metafísico ao mecanismo cartesiano herdado do corpo como coisa.Essa língua crioulizada, marcada por uma confluência de África, Ásia, Europa e resíduos das línguas dos povos indígenas do Caribe e da América do Sul, honrava os ancestrais como uma obrigação permanente pela qual os descendentes recebiam valor.Assim, apesar da lógica imposta pela estrutura gramatical euromoderna a um corpo que se torna um “isso”, os elementos ativos das obrigações contínuas a uma pessoa que se tornou ancestral resistiam àquela designação certeira que tornava eficiente a dissecação de um cadáver em uma laje. >LER ARTIGO COMPLETO
Original Contents by Revista ENTRELETRAS (Araguaína), v. 13, n. 3, set./dez. 2022