Uma das características mais intrigantes das sociedades que estiveram sujeitas ao colonialismo histórico europeu é a permanência, a seguir à independência, de relações de tipo colonial sob velhas e novas formas, tanto internas como internacionais. Dois desses tipos estão há muito identificados. São o colonialismo interno e o neocolonialismo/imperialismo. O conceito de colonialismo interno refere-se ao modo como as elites que sucederam aos colonizadores europeus – que no caso das Américas, Nova Zelândia e Austrália eram descendentes destes – se apropriaram do poder e das terras que antes tinham sido usurpados pelos colonizadores. De tal modo o fizeram que os povos nativos/originários ou trazidos como escravos continuaram sujeitos ao mesmo tipo de dominação colonial, quando não foram exterminados, o que aconteceu particularmente na América do Norte. O conceito de neocolonialismo refere-se à dependência sobretudo económica (e, por vezes, militar) dos novos países em relação à antiga potência colonizadora, enquanto o conceito de imperialismo se refere ao mesmo tipo de relações entre os países hegemónicos do Norte global (centro do sistema mundial) e os países dependentes do Sul global (periferia e semi-periferia do sistema mundial).
Penso que a continuidade dinâmica das relações coloniais assenta na permanência, ao longo dos últimos cinco séculos, de três modos principais de dominação: capitalismo (desigualdade classista), colonialismo (desigualdade etno-racista) e patriarcado (desigualdade sexista e redução da diversidade de género a homens e mulheres). Todos estes modos de dominação foram concomitantes de epistemicídio (desqualificação dos saberes não eurocêntricos como residuais, atrasados ou mesmo perigosos e blasfemos). Tanto o colonialismo como o patriarcado existiram muito antes do capitalismo e exercidos por outros povos que não os europeus, mas foram profundamente reconfigurados a partir do momento em que foram articulados com o capitalismo. Por outro lado, estas formas de dominação também vigoraram e vigoram no interior dos antigos países colonizadores, ainda que de modos muito diferentes. As independências políticas alteraram (com intensidades diversas) estas três dominações, mas não as eliminaram. O modo como as dominações se dispuseram nas colónias e antigas colónias teve as seguintes características gerais.
A ferida colonial
Supressão epistemológica. A supressão ou negação de todos os conhecimentos discrepantes com o conhecimento religioso e científico trazido pelos colonizadores, mesmo que tais conhecimentos existissem desde tempos imemoriais e fossem os que davam sentido à vida das populações. Quando não suprimidos, esses conhecimentos foram transformados em informação a ser apropriada e validada pela ciência.
Mito do desenvolvimento. A história dos povos anterior à invasão colonial foi violentamente interrompida e os povos invadidos foram forçados a esquecer a sua história e a entrar na história dos colonizadores, a história mundial como metonímia da história da expansão europeia. Em relação a esta última, os povos invadidos e mais tarde independentes foram considerados atrasados, menos desenvolvidos, e incitados a mobilizar-se para se modernizarem e desenvolverem. Não do modo que quisessem e para os objectivos que decidissem, mas do modo seguido pelos países colonizadores ou ex-colonizadores e para os objectivos por eles adoptados. Um dia seriam todos igualmente desenvolvidos, um dia que nunca chegou.
Predominância de exclusões abissais. O modo como se articularam globalmente as três dominações fez com que nas colónias e ex-colónias o poder desigual gerado pelo colonialismo (racismo, roubo de terras, divisão das populações entre assimilados e indígenas) e patriarcado (sexismo, feminicídio, homofobia) fosse particularmente violento e atingisse mais populações. O poder assentava na ideia de que as populações vítimas dele eram compostas por seres naturalmente inferiores, a quem, por essa razão, não era pensável aplicar o mesmo direito que regulava as relações entre colonizadores e entre seus descendentes. Essa dualidade jurídica poderia ser formal ou informal, mas configuraria sempre uma exclusão sem garantias de protecção eficaz das populações racializadas ou sexualizadas.
Confinamento ao particular e local. As práticas e os conhecimentos das populações coloniais e ex-coloniais foram sempre considerados excepções locais ou particulares em relação às práticas e conhecimentos dos colonizadores e seus descendentes, umas e outros considerados universais e globais, por mais que fossem, na sua origem, particularismos e localismos eurocêntricos.
O mito da preguiça. Finalmente, as populações coloniais e ex-coloniais foram consideradas preguiçosas, pouco produtivas, avessas ao trabalho árduo, o que “justificou” a escravatura e o trabalho forçado, modelos de super-exploração do trabalho que, sob outras formas, continuam a vigorar. Ao longo do século XX, os modos de vida destas populações adquiriram um glamour especial transformado em mercadoria pela indústria global do turismo.
De tudo isto resultou o que hoje se designa por ferida colonial, uma ferida que, em realidade, decorre de uma articulação específica entre capitalismo, colonialismo e patriarcado, caracterizada pela extensão e intensidade com que as maiorias (muitas vezes designadas como minorias) são tratadas como seres inferiores e objectos de violência impune. Nos últimos cento e cinquenta anos, os povos e as populações que foram e continuam sujeitas ao colonialismo dos europeus e seus descendentes têm vivido uma dura experiência de oscilações sem fim entre períodos de expectativas de libertação e de vida digna e períodos de frustração ante o regresso, por vezes agravado, das formas mais violentas de dominação e de sujeição por parte das elites e sua tríplice supremacia classista, racial e sexual. A apropriação privada, muitas vezes violenta e ilegal, de bens comuns – sejam eles recursos naturais, humanos, institucionais, culturais – parece continuar sem fim à vista.
Luta sem cura?
A ferida colonial impediu que as populações oprimidas pela tríplice dominação considerassem o seu passado como fechado e, pelo contrário, o concebessem como uma tarefa ou missão por cumprir. Foi assim que o futuro foi sendo constituído em promessa da cura da ferida colonial e da violência que ela constituía. No entanto, em face do ciclo vicioso entre expectativa e frustração, o futuro próximo foi-se tornando distante. Até chegarmos ao nosso tempo paradoxal, simultaneamente vertiginoso e estagnado, em que a cura da ferida colonial parece destinada a ser uma miragem. Não há alternativas? Esta pergunta faz muito pouco sentido para aqueles e aquelas que diariamente têm de procurar alternativas para continuar a viver com dignidade, alimentar os filhos ou sobreviver à violência impune. A razão está em que o ciclo vicioso das expectativas e frustrações nunca é vicioso para quem luta e enquanto luta. Há sempre esperança que desta vez seja diferente. A história afinal nunca se repete. É a esperança que cria a luta e, paradoxalmente, é também a luta que cria a esperança. Daí que a dominação, por mais injusta e violenta, só se torne intolerável quando há resistência e luta. Houve progressos? Sim, mas não houve progresso. A abolição da escravatura foi um progresso, mas foi persistentemente substituído pelo “trabalho análogo ao trabalho escravo” (designação proposta pela ONU) que hoje continua a aumentar. Ou seja, muitas das transições que foram imaginadas como passagem para uma sociedade mais justa, qualitativamente melhor, foram, de facto, quase sempre momentos de um ciclo, momentos de esperança, de progresso e de justiça, que logo depois foram seguidos pela reacção conservadora e mesmo violenta das novas e velhas classes dominantes e suas elites, ciosas dos seus privilégios, com o consequente rosário de retrocessos, fossem eles o regresso da fome, do autoritarismo, da guerra, da violência caótica contra as populações oprimidas. Será que tudo volta ao princípio ou tal ideia é apenas uma construção de intelectuais pessimistas?
Se tomarmos o Brasil como exemplo, verificamos que o país atravessa neste momento um ciclo político conservador de frustração e de retrocesso social para as classes populares, que é a resposta das classes e elites dominantes ao ciclo progressista e de esperança que se inaugurou com o primeiro governo de Lula da Silva. Os avanços na distribuição de rendimento, na democratização da educação, nos direitos laborais, e nas políticas sociais em geral começaram a ser contestados a partir de 2016 e a ser activamente neutralizados a partir de 2018. Esta fase do ciclo tem hoje no bolsonarismo a sua expressão mais radical e está longe de estar esgotada, qualquer que seja o vencedor das eleições de 30 de Outubro. As medidas do período progressista que mais incomodaram as elites conservadoras (e das classes médias que nelas se revêem) tiveram a ver com políticas em que o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado mais visivelmente se articulavam, como no que diz respeito aos direitos laborais das empregadas domésticas (na grande maioria mulheres negras e pobres), ao sistema de quotas (acções afirmativas) no acesso à universidade que beneficiaram maioritariamente os filhos de famílias afrodescendentes pobres, ou ainda às leis que alteraram o regime das sexualidades e o impacto que tiveram nas concepções tradicionais de família (casamento entre pessoas do mesmo sexo). De algum modo, esta mudança de ciclo teve no passado uma outra versão quando a fase progressista dos governos de Juscelino Kubitschek e João Goulart (que incluía a reforma agrária) teve como resposta conservadora o golpe de 1964 e a ditadura militar que duraria vinte anos.
Foi assim até agora. Continuará a ser no futuro? Para os que sofrem na pele os retrocessos e a violência, a luta recomeça e assim os pais do desespero geram filhos da esperança. Acontece que nas últimas décadas houve uma mudança significativa no modo como os ciclos da esperança e do medo, da expectativa e da frustração, são vividos pelas populações oprimidas. Essa mudança deveu-se a duas condições históricas novas. Por um lado, a democracia liberal, que até à década de 1980 era concebida como um regime que exigia algumas pré-condições para se implantar e consolidar, (reforma agrária, existência de classes médias, nível de urbanização), passou a partir de então a ser concebida como não exigindo quaisquer pré-condições e, pelo contrário, como sendo a pré-condição da legitimidade para qualquer sistema político. A democracia, uma vez esvaziada dos seus objectivos sociais, permite uma oscilação temporalmente delimitada entre expectativa e frustração. A opção entre partidos, por mais aparente que seja o seu impacto na vida concretas das pessoas, assume sempre a grande dramaticidade das noites eleitorais, o que lhe confere renovada realidade. Por outro lado, a revolução das tecnologias de informação e de comunicação veio criar condições para um controle ideológico das subjectividades sem precedentes, que as forças de direita e de extrema-direita, quase sempre associadas às religiões evangélicas fundamentalistas (sobretudo pentecostais), souberam explorar muito mais intensamente que as forças progressistas. O medo e a esperança, a frustração e a expectativa passaram a ser mercadorias psíquicas produzidas incessantemente pelas indústrias profanas e religiosas da subjectividade. A tentativa de destruir a memória visa transformar o medo e a esperança em posições em jogos de vídeo.
A luta pela cura
Este quadro mostra a dimensão das tarefas necessárias para inverter o movimento conservador dos ciclos e, sobretudo, para converter os ciclos em espirais em que se vão consolidando práticas de vida livre, justa, digna para grupos populacionais cada vez mais vastos. Por mais abstrato que tal pareça, no centro das tarefas está a luta por justiça epistémica para que as populações mais fustigadas pela dominação capitalista, racista e sexista possam representar o mundo como seu e assim lutar pelas transformações que melhor as defendam dos empresários da manipulação do medo e da esperança.
Conteúdo Original por JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias