Como fica a Europa com as novas configurações desencadeadas pela guerra na Ucrânia
Quando a guerra de informação atinge as proporções que hoje tem, o público é condicionado para rejeitar o que quer que se afaste da narrativa que se pretende impor. Esta nunca é totalmente falsa nem totalmente verdadeira. O que a caracteriza é não querer ser questionada para poder mobilizar ao máximo as emoções de um público cativo. Muitas perguntas, que noutro contexto pareceriam óbvias, não chegam a ser suprimidas porque nem sequer se fazem. São perguntas absurdas. Imaginemos algumas.
É possível ganhar uma guerra a uma potência nuclear?
Nos últimos setenta anos a doutrina da dissuasão nuclear assentou na resposta negativa a esta pergunta. Se a atual guerra na Ucrânia conduzir a uma resposta diferente, constituirá uma subversão total das teorias militares e geoestratégicas. Se tal for o caso, outra pergunta emerge: em que situação fica quem ganha? E quem perde? As ruínas dos vencedores distinguem-se das ruínas dos vencidos?
Estas perguntas conduzem a uma outra ainda mais crucial: quaisquer que sejam as provocações, pode uma potência nuclear iniciar uma guerra, sendo certo que sobre as guerras só se sabe quando começam e nunca quando acabam nem como acabam? Se se entender que as respostas convencionais da dissuasão nuclear ainda prevalecem, então impõe-se de imediato a negociação, e nela todos devem participar e todos têm de ceder algo, tal como aconteceu no Tratado de Vestefália de 1648. Impõe-se de imediato a negociação, e nela todos devem participar e todos têm de ceder algo, tal como aconteceu no Tratado de Vestefália de 1648.
Por que é que a guerra da informação é mais eficaz na Europa do que no resto do mundo?
Quando intervenho em debates públicos fora da Europa, o carácter unilateral da narrativa euro-norte-americana é frequentemente questionado. A posição do Papa Francisco sobre as provocações da NATO suscitou mais atenção na América Latina do que na Europa ou nos EUA (mesmo sabendo-se que Joe Biden é católico). A resposta fácil a esta pergunta é que a guerra da Ucrânia ocorre na Europa e é, por isso, natural que a Europa se alinhe mais acriticamente com a narrativa norte-americana, quer quanto às causas da guerra, quer quanto à caracterização do regime político da Rússia.
A resposta mais esclarecedora parece-me ser que a Europa tem uma experiência histórica de relações com os EUA caracterizadas pela benevolência. Afinal, os EUA ajudaram na luta contra o nazismo, promoveram o Plano Marshall (“Programa de Recuperação Europeia”) entre 1948 e 1951 e assumiram a responsabilidade pela segurança da Europa ocidental. Pelo contrário, noutras regiões do mundo a história das relações com os EUA é muito mais complicada e inclui interferências, invasões, imposições, fomento de golpes antidemocráticos, critérios duplos na defesa dos direitos humanos, etc. Tudo isto, combinado com as possíveis repercussões diretas ou indiretas das sanções económicas contra a Rússia nos seus países e com a extrema intensidade da narrativa anti-Rússia (onde é fácil antever a próxima narrativa anti-China), constitui um vasto campo para questões e dúvidas.
Qual o futuro da esquerda na Europa depois da guerra na Ucrânia?
Com poucas exceções, as esquerdas europeias condenaram a invasão da Rússia, mas até agora renunciaram a qualquer pensamento crítico sobre as causas da guerra, a expansão da OTAN (o que é surpreendente porque, no passado, foram anti-OTAN), as consequências sociais e políticas do rearmamento da Europa, a hipocrisia da direita ao falar da necessidade dos sacrifícios e da perda do conforto porque sabe que são sempre os mesmos a sofrê-los, a urgência da negociação e da paz, o racismo e o sexismo de que são vítimas algumas e alguns dos refugiados da Ucrânia, a incapacidade da versão hegemónica dos valores europeus em ser verdadeiramente universal e condenar as violações dos direitos humanos atualmente em curso contra palestinos, sírios, afegãos, sarauís, e tantos outros.
Acresce que a direita tem vindo a assumir um triunfalismo absurdo, como se defender os valores da democracia e da autodeterminação dos povos fosse seu patrimônio, quando a história da Europa reza o contrário. Por tudo isto, é possível que a esquerda saia desarmada da atual crise e que as mais que prováveis perdas de salários e pensões, antes impostas pela “crise”, sejam no futuro impostas por imperativos igualmente “patrióticos”. Daí, a próxima pergunta.
No futuro próximo, será sustentável o relativo bem-estar e o Estado social de direito que caracterizou a Europa ocidental nos últimos setenta anos?
Para além de muitas outras razões, a relativa prosperidade europeia assentou em três pilares: tributação progressiva, combinada com a nacionalização de ativos estratégicos; ausência de gastos militares; exploração dos recursos naturais fora da Europa. A tributação progressiva significava que quem tinha mais rendimento ou riqueza pagaria mais impostos. As taxas de tributação podiam atingir 70%. Esta foi a maneira de financiar as abundantes políticas sociais que estiveram na base do bem-estar dos cidadãos.
Com a emergência do neoliberalismo e com o Consenso de Washington de 1985, que o consagrou, este pilar ruiu. Gerou-se a ideia de que os impostos eram um obstáculo ao desenvolvimento econômico, e o mesmo acontecia com os ativos estratégicos nacionalizados. As agências multilaterais (FMI e Banco Mundial) passaram a impor a baixa de impostos e a privatização dos recursos estratégicos. Privados dos recursos dos impostos e confrontados como os possíveis custos políticos decorrentes de reduzir drasticamente as políticas sociais, os Estado recorreram ao endividamento. E foi assim que explodiu a dívida pública externa dos Estados. Dependentes da oscilação e da especulação das taxas de juro, os Estados viram-se na contingência de baixar os seus gastos (investimentos) sociais.
O segundo pilar da prosperidade europeia foi o de não precisar de fazer despesas militares, isto é, de gastar somas avultadas em material de guerra. Afinal, a segurança europeia estava garantida pelos EUA através da OTAN. Este pilar acaba de ruir com a guerra da Ucrânia. Todos os países europeus estão a rever os seus orçamentos de modo a aumentar as despesas militares e os seus contributos para o reforço da OTAN. Esta, entretanto, prepara-se para novas expansões nos países com fronteira com a Rússia. Se a Alemanha cumprir o que promete (gastar 2% do PIB em armamentos) será dentro de anos o quarto exército mais poderoso do mundo. Ora, é sabido que, como o orçamento não é infinitamente elástico, o dinheiro que abundar para a compra das armas certamente faltará para melhorar as escolas, a saúde pública, etc., em suma, para sustentar o bem-estar social.
Neste momento, resta à Europa o terceiro pilar do seu bem-estar, os investimentos das suas empresas nos recursos naturais existentes em outros continentes e os avultados lucros que geram. Também este pilar está ameaçado, não só pela concorrência de outros países, como pela resistência dos países onde esses recursos existem, isto para não falar da violência paramilitar que rodeia cada vez mais os empreendimentos mineiros.
Perante isto, a direita e a extrema-direita estão prontas para prosperar com o novo status quo. E as esquerdas, que foram as grandes responsáveis pela consolidação da social-democracia? Quais vão ser as suas posições? Que novos tipos de convergência vão ser necessários? Que eu saiba, a única discussão em curso na Europa neste momento ocorre na projetada unidade de esquerda em volta da França Insubmissa de Jean-Luc Melénchon com vista às próximas eleições legislativas.