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Opinião
O caminho da verdade é o da alteridade, o avesso do narcisismo egoísta que nos sufoca
Milton Rondó
Carta Capital
2022-01-24

Contra os destrutores de diversidades, o pensamento plural, rico, sedento de vida, de conhecimento, de descobertas – sem dominação alguma

Ensaios. O ativista indígena Ailton Krenak; o sociólogo Boaventura de Sousa Santos; e a escritora e militante Helena Silvestre vão na contracorrente

“Eu só sei criar na dor e na tristeza.”
Vinícius de Moraes, em entrevista a Clarice Lispector

Em excelente resenha literária, publicada em Carta Capital, Fábio Mascaro Querido, professor de Sociologia da UNICAMP, comenta
O sistema e o antissistema: três ensaios, três mundos num mesmo mundo, volume que contém ensaios de Ailton Krenak, Helena Silvestre e Boaventura de Sousa Santos.
Helena inova, ao classificar o atual estágio do capitalismo de “moderno-colonial”. O Brasil que o diga. No ano em que se comemora o bicentenário da independência, o País encontra-se reduzido, mais uma vez, à condição de colônia, fazendão agroexportador.
Quanto à contribuição de Krenak, Fábio Mascaro nota: “Tal como o lema dos zapatistas mexicanos, o intelectual indígena defende a construção de um mundo no qual caibam outros mundos.”

Que imensa necessidade de alteridade temos neste momento, em um mundo doente de narcisismo! Não é à toa que a mais cosmopolita das cidades, Jerusalém, onde coabitam, mal, mas em certa paridade, as três religiões monoteístas abraâmicas, tem seu estatuto especial – reconhecido pela ONU – diuturnamente violado por Israel, o aliado colonial do império decadente, na região.

O professor Mascaro observa o traço de união entre os três intelectuais citados: “No fundo, aos três interessa pensar os contornos de uma reativação da democracia desde baixo, ou seja, a partir da ótica dos oprimidos e de suas formas de perceber e atuar sobre o mundo… Cada qual à sua maneira, os três autores se situam, claramente, na contracorrente.”

Nos comentários na imprensa sobre a atual crise Rússia-OTAN, pode-se verificar quanta falta de empatia existe por parte do Ocidente com relação ao Oriente, inclusive entre cristãos, sendo rala e reles a solidariedade mesmo entre irmãos. A paz, em meio à dor e à tristeza, como aplaudiria o Poetinha diplomata!

Com efeito, o Comandante da Marinha alemã, corajosamente, pediu respeito à Rússia. Teve de pedir demissão do cargo – pasmem o leitor e a leitora – mesmo estando em um governo supostamente de esquerda. Que triste espetáculo.

Pior, o almirante nada mais fizera do que ser respeitoso das relações internacionais, principalmente com um país que a potência europeia invadira em duas guerras mundiais, assassinando milhões de russos e russas, além de causar danos econômicos incalculáveis.

Na verdade, o almirante alemão demonstrara também grande realismo, tendo emvista que o próprio país jamais vencera uma guerra contra a Rússia.

Mas como tirar razão do governo alemão “de esquerda”?

O genocida brasileiro não atacou até a primeira-dama da França? (Todo covarde prefere atacar mulheres…)

Respeito é o que menos se vê na cena internacional – e nacional, no caso brasileiro.

A força e a ignorância são louvadas; as armas, enaltecidas; o roubo, legalizado. Ajustiça e a paz, vilipendiadas.
A demissão do almirante alemão recorda a citação do Eclesiastes, no Livro dos Elogios, de Leonardo Boff: “Havia uma pequena cidade de poucos habitantes: um rei poderoso marchou sobre ela, cercou-a e levantou contra ela grandes obras de assédio. Havia na cidade um homem pobre, porém sábio, que poderia ter salvo acidade com sua sabedoria. Mas ninguém se lembrou daquele homem, porque era pobre. E a cidade foi tomada e destruída (Ecl 9, 14-16).”

Na mesma obra, Boff também cita um lamento dos maias centro-americanos, sobre a chegada dos invasores, desrespeitosos da cosmovisão alheia, manipuladores de religião, narcisistas que negavam a riqueza da alteridade (visão não muito distante da que acomete irmãos latino-americanos com relação à Nicarágua atualmente): “Ah! Entristeçamos-mos porque chegaram…Os mui cristãos chegaram com o verdadeiro Deus, porém isso foi o começo da nossa miséria, o princípio de nosso padecimento. Eles nos ensinaram o medo. Fizeram as flores murchar. Danificaram e engoliram nossa flor, para que só a flor deles vivesse. Esse Deus verdadeiro que vem do céu, só de pecado falará, só de pecado será o seu ensinamento.”
Ao contrário, o caminho da verdade é o da alteridade! O avesso do narcisismo egoísta, que, como o vírus, nos encerra, limita, sufoca – literalmente.
Contra os destrutores de diversidades, humanas e ambientais, o pensamento plural, rico, sedento de vida, de conhecimento, de descobertas – sem dominação alguma.


Milton Rondó. Diplomata aposentado, foi secretário socioeconômico do Instituto Ítalo-Latino Americano; vice-presidente do Comitê Consultivo do Fundo Central de Emergências da Organização das Nações Unidas (ONU) e representante, alterno, do Ministério das Relações Exteriores no extinto Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).



Conteúdo Original por Carta Capital