O trabalho de cuidar passa, em grande medida, por atividades que não são reconhecidas formalmente como trabalho. A forte feminização dessas atividades está associada a padrões de divisão sexual ou de género, à distinção entre trabalho produtivo e reprodutivo ou entre trabalho remunerado e não remunerado. Artigo de João Arriscado Nunes.
Fotografia: Vicki Nunn/Wiki Commons
O cuidado pode ser definido, de forma sucinta, como tudo o que fazemos para manter, continuar e reparar o mundo que habitamos e de que fazemos parte de modo a viver da melhor maneira possível, procurando tecer processos e ações complexas que sustentem a vida.[1]
As práticas que materializam o cuidado incluem, entre outras, a proteção social de populações, comunidades e grupos vulnerabilizados, a vigilância e promoção da saúde, a educação, a proteção do ambiente e das condições que possibilitam e sustentam a vida, o acesso a cuidados de saúde e a provisão destes, a promoção e defesa do trabalho com direitos e o combate a todas as formas de discriminação, à desigualdade e à desumanização.[2]
Uma política centrada no cuidado considera condições a montante e processos heterogéneos que determinam a vulnerabilidade e exposição a diferentes tipos de ameaças à saúde, ao ambiente e à vida (economia da produção agropecuária de grande escala e da criação e processamento industrial de animais para alimentação humana, desflorestação, atividades extrativistas, degradação ecológica e contaminação de zonas urbanas, campos, florestas, águas…).
Durante a atual pandemia, a definição pelo estado de serviços e de pessoas essenciais mostrou a importância das atividades que cabem nessa definição ampla do cuidado. Mas nem todas são igualmente visíveis. Muitas das pessoas consideradas essenciais em situações de emergência trabalham com mais exposição a problemas de saúde e ambientais ou a acidentes, em condições de maior precariedade e com salários baixos. É quando elas faltam ou decidem não trabalhar que se verifica a sua importância na manutenção e reparação das condições infraestruturais da vida social e económica (limpeza, alimentação, segurança, transportes, manutenção e reparação de equipamentos e infraestruturas…).
Outras atividades têm maior visibilidade, especialmente quando estão associadas a profissões que exigem qualificações obtidas através de uma formação especializada. Algumas são explicitamente designadas como serviços de prestação de cuidados, como as que estão associadas à saúde, à educação ou ao serviço social, no setor público, privado ou social.
O trabalho de cuidar passa, em grande medida, por atividades que não são reconhecidas formalmente como trabalho. A forte feminização dessas atividades está associada a padrões de divisão sexual ou de género, à distinção entre trabalho produtivo e reprodutivo ou entre trabalho remunerado e não remunerado. Algumas das profissões associadas ao cuidado de crianças, de pessoas idosas, de pessoas portadoras de deficiência ou de doentes crónicos coexistem com o trabalho não-remunerado no âmbito da família ou da solidariedade vicinal, laboral ou comunitária. A educação em ambiente escolar coexiste e entretece-se com a socialização na família e na comunidade. É através deste multifacetado processo que se criam, mantêm, reproduzem ou transformam as relações que tecem a vida social. Sem elas, e sem as diferentes formas de sociabilidade que as sustentam e configuram, não haveria vida social, não haveria economia, não haveria socialização e aprendizagem, não haveria como cuidar de crianças, pessoas idosas, pessoas com deficiência ou doentes, não haveria como manter uma relação saudável e sustentável com o mundo.
Mesmo a existência de instituições e de profissões destinadas a assegurar cuidados não pode subsistir sem as experiências, saberes e práticas de cuidar que são habitualmente designadas de informais ou tradicionais, que atravessam e mantêm as densas teias da solidariedade e da relacionalidade complexa que as liga no que podemos chamar uma ecologia. Nesta se cruzam tempos, modos e escalas do cuidado, formas diversas de o reconhecer e avaliar, práticas, saberes e afetos que sustentam e tornam possível a vida em sociedade e as relações de interdependência virtuosa com o ambiente e com a teia da vida e as condições que permitem a sua existência.
A experiência da pandemia veio lembrar que essas relações que sustentam e tecem a vida podem ser também veículo de ameaças à vida, sob a forma de vírus ou outros patógenos transmissíveis. E elas podem, em certas contextos ou circunstâncias, confinar, limitar e constranger a vida das pessoas que nelas estão envolvidas. O idioma do cuidado pode então converter-se em formas de preconceito, de discriminação, de ódio e de segregação em que se fundam as diferentes dominações e opressões, que se criam, ampliam e perpetuam os processos de vulnerabilização e de violência, nas suas diferentes formas.
Apesar da celebração das virtudes da sociedade civil – em especial quando ela serve para atacar ou criticar o estado -, a complexa teia de relações que sustenta e repara a vida social tende, no momento presente, a desaparecer do debate público, entre as defesas e críticas do governo pela saúde pública, as controvérsias sobre a tensão entre interesse público e liberdade individual e a preocupação com a economia. São assim invisibilizadas as relações que se forjam através da partilha de experiências de vida, de memórias, de atividades em comum, de solidariedades e interdependências que vão criando laços fortes, de contradições que são vividas através de experiências de vulnerabilização e de sofrimento, mas também de resistências e de lutas travadas no quotidiano que não podem ser entendidas senão enquanto parte desse universo de relações de sociabilidade, de convivialidade, de solidariedade, de interdependência na construção partilhada de mundos. O debate sobre as escolas, a sua abertura ou encerramento durante a pandemia e as preocupações com os efeitos na vida e no desenvolvimento das crianças e adolescentes ajudou certamente a entreabrir uma porta para o reconhecimento da importância dessas relações.
O cuidado afirma-se contra a dominação e a violência; enquanto condição da vida em comum, ele deve ser reconhecido e valorizado nas formas de trabalho que o fazem existir, e em particular no das pessoas que são designadas de cuidadores e cuidadoras informais. Delas depende crucialmente a possibilidade de as formas institucionalizadas e profissionalizadas de cuidado não se transformarem em processos de descuidar e de esvaziar a construção da vida em comum e a solidariedade que a sustenta. O reconhecimento oficial, pelo estado, da condição de cuidador/a informal e a aprovação do respetivo estatuto aparece como um passo importante no sentido do reconhecimento dessa teia de relações que configuram o cuidado como ecologia. Mas os passos seguintes estão dependentes da capacidade de afirmar e fortalecer essas relações. As histórias e os testemunhos das experiências do cuidar, de quem cuida e de quem é cuidado são um recurso incontornável para essa afirmação.[3]
Por isso é importante restituir visibilidade a esses espaços de relações, de saberes, de práticas e de memória, a essa ecologia do cuidado, da produção coletiva de sentidos, de afetos e de respostas ao sofrimento e às ameaças à existência, com atenção às escalas, aos territórios, aos espaços de convivialidade, às relações entre o estado e as suas instituições, em suma, ao que torna possível a solidariedade, a participação democrática e a cidadania ativa.
João Arriscado Nunes: Sociólogo. Investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, nas áreas dos Estudos Sociais de Ciência, Tecnologia, Saúde e Ambiente. Membro do Grupo de Investigação em Epistemologias do Sul.
Notas:https://ces.uc.pt/pt/ces/pessoas/investigadoras-es/joao-arriscado-nunes
[1] Maria Puig de la Bellacasa, Matters of Care, Minneapolis: University of Minnesota Press, 2017, p. 3.
[2] Para uma discussão do cuidado centrada no campo da saúde, ver João Arriscado Nunes e Mauro Serapioni, “Saúde e sociedade”, in José Reis (coord.), Como reorganizar um país vulnerável? Lisboa: Conjuntura Actual Editora, 2020, pp. 151-174.
[3] José Soeiro, Mafalda Araújo e Sofia Figueiredo, Cuidar de quem cuida. Lisboa: Objectiva, 2020.
Dossier 343: Serviço Nacional de Cuidados
Conteúdo Original por Esquerda.net