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Opinião
A ONU na Encruzilhada: a crise da Ucrânia
Boaventura de Sousa Santos
2022-01-17

Os exigentes desafios que o mundo enfrenta neste momento – da crise climática à pandemia, do agravamento da Guerra Fria ao perigo de uma confrontação nuclear, do aumento das violações dos direitos humanos ao crescimento exponencial do número de refugiados e de pessoas com fome – exigem mais do que nunca uma intervenção activa do ONU, cujo mandato inclui a manutenção da paz e da segurança colectivas e a defesa e promoção dos direitos humanos.

Entre muitas áreas de intervenção em que a ONU pode reconquistar a sua centralidade, uma das mais importantes é a da paz e segurança, e respeita concretamente ao agravamento da Guerra Fria. Iniciada por Donald Trump e prosseguida com entusiasmo por Joe Biden, está em curso uma nova Guerra Fria que tem aparentemente dois alvos, a China e a Rússia, e duas frentes, Taiwan e Ucrânia. À partida, parece insensato que uma potência em declínio, como são os EUA, se envolva numa confrontação em duas frentes simultaneamente. Para mais, ao contrário do que se passou com a Guerra Fria anterior, visando a União Soviética, a China é uma potência de grande poder económico e um importante credor da dívida pública dos EUA. Está a ponto de ultrapassar os EUA como a maior economia mundial e, pela primeira vez em 2021, teve uma produção científica superior à dos EUA (788.267 artigos de cientistas chineses contra 766.789 de cientistas norte-americanos). Acresce que a lógica aconselharia os EUA a ter a Rússia como aliada e não como inimiga, não só para a separar da China, como para acautelar as necessidades energéticas e geoestratégicas da sua aliada histórica, a Europa.

É particularmente preocupante que os neocons (os políticos e estrategas ultra-conservadores que desde o ataque às Torres Gémeas em 2001 dominam a política externa dos EUA) acirrem simultaneamente as hostilidades com a Rússia e apelem para que os EUA se preparem para uma guerra com a China no final da década, uma guerra quente de tipo novo (a guerra com os meios da inteligência artificial). O poder mediático internacional dos neocons é impressionante. Tal como aconteceu em 2003 com os preparativos da invasão do Iraque, assistimos a um unanimismo alarmante dos comentadores de política externa no chamado mundo ocidental. De repente, a China, que até agora era um parceiro comercial importante e fiável, passa a ser uma ditadura que viola massivamente os direitos humanos e uma potência malévola que quer controlar o mundo, desígnios que têm de ser neutralizados a todo o custo. Por sua vez, a Rússia, até agora um parceiro estratégico (caso do acordo nuclear com o Irão), é agora um país governado por um presidente autoritário e agressivo, Vladimir Putin, que quer invadir a democrática Ucrânia. Para a defender, os EUA ajudarão militarmente e, para isso, a Ucrânia deve juntar-se à Nato. Esta narrativa, apesar de ser falsa, é reproduzida sem contraditório no Washington Post e no New York Times, é depois ampliada pela Reuters e Associated Press e secundada pelos briefings das embaixadas dos EUA. Os comentadores ocidentais apenas a regurgitam acriticamente. Perante isto, é urgente que se faça ouvir e sentir a intervenção da ONU para travar a deriva de uma terceira guerra mundial.

A ONU tem informação abundante que lhe permite contrariar esta narrativa e intervir activamente para neutralizar o seu potencial destrutivo. Refiro-me neste texto especificamente ao caso da Ucrânia. A Ucrânia é um país etnolinguisticamente dividido entre um ocidente predominantemente ucraniano e um oriente predominantemente russo. Ao longo da década de 2000, as eleições e os inquéritos de opinião revelaram a oposição entre um ocidente pró-União Europeia e pró-Nato, por um lado, e um oriente pró-Rússia, por outro. Em termos de recursos energéticos, a Ucrânia depende em 72% do gás natural da Rússia, tal como acontece com outros países europeus (a Alemanha depende em 39%), o que dá uma ideia do poder de negociação da Rússia neste domínio. Desde o fim da União Soviética, os EUA têm vindo a tentar retirar a Ucrânia da órbita da Rússia e integrá-la na do mundo ocidental e, de facto, transformá-la num bastião pró-norteamericano na fronteira da Rússia. Esta estratégia tem tido pilares: integrar a Ucrânia militarmente na NATO (aprovada na Cimeira de Bucareste de 2008, tal como a Geórgia, outro país com fronteira com a Rússia) e economicamente na União Europeia. A revolução laranja, ou melhor, o golpe de 22 de Fevereiro de 2014, fortemente apoiado pelos EUA, foi o pretexto para acelerar a estratégia ocidental. Teve a sua causa imediata na recusa do presidente Yanukóvytch em assinar um acordo de integração económica com a UE que deixava de fora a Rússia. Seguiram-se protestos e muita agitação social que se saldaram em mais de 60 mortes (sabe-se hoje que havia grupos fascistas fortemente armados entre os manifestantes). Em 22 de Fevereiro o presidente foi obrigado a sair do país. A “promoção da democracia” conduzida pelos EUA tinha dado resultado: a “revolução laranja” iniciava a sua política anti-russa. A Rússia tinha avisado que a integração na NATO e a integração exclusiva na UE constituía uma “ameaça directa” à Rússia. Nos meses seguintes, a Rússia ocupou a Crimeia, na parte oriental da Ucrânia, onde já tinha uma importante base militar.  

Em 2014 e 2015 celebraram-se os protocolos de Minsk com a intermediação da Rússia, França e Alemanha. Reconhecia-se a especificidade etnolinguística da região do rio Don (Donbas) (maioritariamente de língua russa) e previa-se o estabelecimento, a cargo da Ucrânia e segundo a lei ucraniana, de um sistema de auto-governo para a região (que abrange áreas dos distritos de Donetsk e Luhansk). Estes protocolos nunca foram cumpridos pela Ucrânia e inclusivamente o ensino da língua russa foi proibido. A tensão voltou agora a aumentar com a suposta intenção da Rússia de invadir a Ucrânia. Perante tudo isto, é de perguntar se quem tem vindo a criar perturbação nesta região do mundo é a Rússia ou os EUA. O comportamento da Rússia é diferente do dos EUA? Todos nos recordamos da crise dos mísseis de 1962, quando a União Soviética se propôs instalar mísseis em Cuba. A reacção norte-americana foi terminante; tratava-se de uma ameaça directa à soberania dos EUA e em nenhum caso se aceitariam tais armas na sua fronteira. Chegou a soar o alarme de uma guerra nuclear. Foi esta reacção muito diferente da reacção actual da Rússia perante a perspectiva de a Ucrânia vir a integrar a NATO?

Em face disto, a ONU sabe que a Rússia não é potência agressiva no conflito actual, e que bastaria que os acordos de Minsk fossem cumpridos pela Ucrânia para a hostilidade cessar. Acresce que, se o alvo principal dos EUA é a China, a crise da Ucrânia é um tiro no pé, pois o modo como os EUA estão a actuar apenas contribui para aproximar mais a Rússia da China, o que não deixará de fortalecer o seu rival. Por sua vez, a ONU sabe tão bem quanto a Europa que, se houver guerra nesta região, o teatro de guerra será a Europa, e não os EUA. A mesma Europa que há pouco mais de setenta anos se ergueu de um inferno de duas guerras mundiais que se saldaram em cerca de 100 milhões de mortes. Se a ONU quer ser a voz da paz e da segurança que consta do seu mandato, o Secretário-Geral tem de assumir uma posição muito mais activa e mais independente da dos países envolvidos. Tem de averiguar in situ o que se passa nos territórios onde as grandes potências se digladiam e se preparam para guerras de hegemonia em que provavelmente serão os aliados menores a sofrer as consequências e a pagar com vidas (Taiwan ou Ucrânia) –  as chamadas proxy wars. O mundo precisa de ouvir vozes autorizadas que não repitam o script imposto pelos rivais. A mais autorizada de todas é a da ONU.