Mário Vitória (2013) A liberdade comovendo o povo [tinta da china e acrílico s/papel, 50x65cm]

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Algumas pessoas compõem canções, outras pintam quadros ou contam estórias, e há ainda aquelas que fazem revoluções para mudar o mundo. No mar infindável das possibilidades de(...)
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Maria Adosinda 

Vera Gasparetto
Publicado em 2022-01-06

Vavasiti Vatinhenha1

Maria Adosinda de Almeida é uma mulher para quem não existiu “não”, de coração generoso e ternura no olhar. Ativista, guerreira incansável, dedicou sua vida à luta pelos direitos das mulheres moçambicanas. Líder grevista na luta contra a exploração da indústria açucareira, fundadora da Associação das Mulheres Desfavorecidas da Indústria Açucareira (AMUDEIA), trilhou chãos e chãos com as bandeiras em defesa da vida plena das mulheres. Com sua capacidade visionária moveu muitas batalhas e não teve medo...ela nunca teve medo. Da sua força muitas vitórias brotaram, da sua vida muito exemplo se segue:

Eu sou Maria Adosinda. Aqui na AMUDEIA eu acho que sou muito feliz. De todas essas mulheres, sou muito feliz, desde quando eu sou trabalhadora lá na empresa de açúcar Maragra sempre andei fazendo leis, para melhorar para toda mulher trabalhadora (Maria Adosinda Almeida, 2017)

 

Narrativas de resistência e transformação das mulheres da AMUDEIA

Durante a pesquisa de campo, no âmbito da realização do doutoramento em Ciências Humanas, em outubro de 20173, conheci as integrantes da AMUDEIA na sede da Manhiça, a cerca de 40 km da cidade de Maputo, capital de Moçambique. Da Estrada Nacional Número 1 (EN-1), perto do mercado local, avistamos o número indicado em um muro pintado com personagens de desenho animados, pois a sede abriga a escola de educação infantil, voltada para a comunidade. Ali encontramos cinco integrantes da Associação: Maria Adozinda, Amélia, Arlete, Clara e Helena.
Elas todas muito arrumadas, vestidas com suas capulanas, uma tão linda e diversa quanto a outra, estavam curiosas e animadas, nos receberam calorosamente e serviram chá, batata doce e mandioca cozidas. Fizemos a refeição enquanto falavam das suas vidas cotidianas. Sentadas em círculo, falaram de suas trajetórias, sobre como passaram a integrar a história da AMUDEIA. Nesse dia, elas estavam muito felizes com o casamento de uma das integrantes, a realizar-se no dia seguinte ao nosso encontro. A noiva afirmou estar recomeçando a sua vida após longos anos de violência doméstica e reconheceu o importante papel que a AMUDEIA teve na mudança da sua vida, como ilustra narrativa durante uma entrevista:

[...] eu tinha medo, mas aprendi muitas coisas. Agora pergunto, estou a viver bem? Não sabia escrever, mas a AMUDEIA trouxe a escola em Maluana, e eu disse “agora tenho que levantar ir à escola para eu saber assinar, saber educar as minhas crianças, saber ir ao mercado, vender cacana, matapa!”. Eu sou machambeira, só sabia cultivar, comer e ficar assim. Mas aprendi que a hora de entrar e sair da machamba, de tomar banho, de vender, comprar cadernos para os meus filhos. Com a AMUDEIA aprendi muitas coisas e sei educar outras mulheres (Clara, 2017).

 

Histórias como a de Clara fazem parte do cotidiano da AMUDEIA, que volta suas ações para mulheres e raparigas desfavorecidas em meio rural e periurbanos. Sua prioridade é o acolhimento e a educação das mulheres, raparigas e crianças, como conta a presidente da Associação:

As mulheres devem conhecer seus direitos, pois acontece ainda que quando o marido morre, é arracanda as machambas, não tem direito a ter um DUATda terra, a mulher não tem direito de nada. Então o nosso sonho para os próximos anos é empoderar as mulheres, dar palestra para conhecerem seus direitos, falar nas escolas para as crianças saberem a saúde sexual e reprodutiva, gravidez precoce (Helena, 2017).

 

A construção de redes de solidariedade e educação, contada por Helena, acolheram Arlete, nascida no distrito de Bilene, na vila sede de Macia, que buscou no lar da AMUDEIA abrigo para lidar com o sofrimento causado por atos de abuso e violência, por parte do seu então marido, que também, segundo me contou tinha a pretensão de tomar com recurso à força o filho que tiveram juntos. Depois de ter recuperado suas condições mínimas de vida, adoeceu e descobriu ser seropositiva.

 

Arlete conta que a Adosinda, a fundadora da AMUDEIA, que tem como mãe, disse para ela que a seropositividade não era o fim da sua vida e, que precisava seguir em frente, fazendo os tratamentos. A situação em que Arlete se encontrava na época era crítica, como ela mesma conta: “Não andava, não fazia nada, mas agora estou viva, sou ativista, dou palestra para incentivar as pessoas que estão doentes a enfrentarem a vida de forma positiva. Depois de muita luta, estou a viver na minha casa e agora vou a escola” (Arlete, 2017).

 

Abrigo e aprendizado auxiliaram Arlete a recuperar sua vida, assim como o espaço de ensino-aprendizagem abriu as portas para a professora Amélia, natural de Marracuene, que procurou a ajuda da Associação após separar-se do marido, oferecendo em troca seus conhecimentos. Amélia trabalhava voluntariamente como “titia da escolinha” da AMUDEIA, que atende crianças da vila. Ela conta como é que soube da existência da Associação e se aproximou dela:

[...] ouvi falar de uma associação que ajuda as mulheres, me aproximei e pedi para trabalhar e cuidar dos meus filhos. Elas me aceitaram, passei a auxiliar as crianças que sofrem muito, ficam no relento (ainda que os pais estejam na vila, as abandonam, e nós as acolhemos), cuidamos e alimentamos com o cultivo da machamba, produzindo a matéria prima para a papinha de batata-doce, de milho, carril de amendoim. As mães não conseguem cuidar porque os maridos as deixam de qualquer maneira, e não conseguem cuidar e alimentar a criança, que precisam de vestir, ser acarinhadas, levadas à escola. (Amélia, 2017).

 

A educação, especialmente, no âmbito dos direitos das mulheres é vista por Amélia e demais integrantes da AMUDEIA, como um dos caminhos a percorrer para a sua libertação da opressão patriarcal. Como sugerem as palavras de Helena, o desafio atual é o trabalho de formação para repensar as questões culturais e a tradição que constituem obstáculos à sua libertação, bem como fortalecer a rede de associações de mulheres na base para terem acesso ao direito e pressionar o Estado a cumprir com seu papel:

[...] nós estávamos baseadas na cultura, pois aqui tudo aquilo que o marido faz, o que os familiares do meu marido fazem eu tinha que cumprir porque era a cultura, mas a AMUDEIA abriu a visão das mulheres e há uma parte dos homens também que já tem vista aberta, porque faziam aquilo ali porque era ‘cultura’, não sabiam que aquilo era errado, mas temos alguns homens que trabalham connosco, são paralegais, são activistas (Helena, 2017).

 

A AMUDEIA atua no combate à violência contra as mulheres que perdura em contextos patriarcais, onde relações sociais de gênero produzem subalternidades. “Trabalhamos com o tribunal, a polícia, procuradoria e a própria saúde. Nós criamos um grupo multissectorial para atender a vítima de violência doméstica, mas temos uma rede de serviços, da qual a AMUDEIA faz uma parte, com sua paralegais” (Dulce, 2017).


Outro desafio da AMUDEIA é a luta pela redistribuição, com a promoção da autonomia econômica das mulheres, buscando educar para a realização de atividades econômicas e de empreendedorismo, assim como o respeito pelos direitos das mulheres dentro da própria família.  O trabalho junto às agricultoras e o despertar da consciência sobre o direito à terra se soma ao direito pelo reconhecimento dos direitos das mulheres e raparigas (p.ex: direitos sexuais e reprodutivos) a uma vida sem violência (doméstica e de outros tipos). O direito à participação política, é igualmente fundamental, feito através da advocacia para a garantia da segurança da posse de terra, dos recursos naturais e do acesso à justiça. 


O surgimento da AMUDEIA: as vavasati vatinhenha (mulheres heroínas)

A AMUDEIA surgiu durante uma greve de mulheres, demitidas da indústria açucareira Maragra. Começou em 1996 com um grupo de 10 pessoas, criando a partir disso uma rede de colaboração e cooperação em todo o país, envolvendo-se em rede com outras associações e organizações, ONGs, meio acadêmico, participação em conselhos de direitos, Fórum Mulher e articulação com outras redes de movimentos sociais. A fundadora da AMUDEIA e Diretora Executiva da Associação é uma das referências do ativismo feminista moçambicano, Maria Adosinda, na altura com 56 anos, veio a falecer em dezembro de 2017.


Durante a pesquisa de campo me interessava saber a história da AMUDEIA e a história particular das mulheres a ela associadas. Por exemplo, saber como Maria Adosinda despertou sua liderança e consciência desde a juventude, quando começou a sua vida no sindicalismo, como ela se tornou ativista e liderança, de onde é que vem a sua força. Adosinda conta que a sua trajetória ativista tenha começado em Nampula, assim ela conta: “acho que lá em Nampula, com minha associação, era uma líder. Conheci Isabel [Casmiro], mais outras pessoas, ela quando estava a falar comigo eu disse ‘yah esta mulher aqui é muito boa, eu muito pequenina’”. Nessa ocasião Adosinda contou como ela vê o feminismo e em sua narrativa transparece a ideia de que o feminismo a constitui desde tenra idade, ao recusar a violência doméstica que assistiu do pai em relação à sua mãe:

É verdade, eu sou essa coisa de feminista, eu sou isso mesmo! Essa coisa de feminista, essa coisa de mulher e homem.  Quando estava casada (agora sou viúva) meu marido também era assim, a minha mãe também viveu isso: meu pai batia muito. Eu disse ‘não eu não posso fazer isso’, pois ele dava muita porrada e até os filhos levavam. Então eu disse ‘isso não’, mas quando casei eu disse ‘não tenho que fazer isto, mais aquilo’ e o marido fazia.  (Adosinda, 2017).

 

Já na empresa Maragra, Adosinda observou o descumprimento de direitos trabalhistas e especialmente no que se refere às mulheres, que não tinham direito ao descanso, nem a cuidar de suas crianças (que as acompanhavam no trabalho) e eram despedidas sem direito à indenização. Dulce Narciso, filha de Adosinda, criada dentro da Maragra e atualmente ativista da AMUDEIA e do Fórum Moçambicano da Mulher Rural (FOMMUR), puxa suas memórias de criança e conta como sua mãe e outras mulheres, junto com seu pai, resistiram às violações dos direitos dos trabalhadores em geral e particularmente das mulheres na Maragra e, por isso, foram expulsas:

As mulheres trabalhavam na machamba e na fábrica da indústria açucareira. Havia muito trabalho, não havia descanso para as mulheres nem para amamentar os bebês devidamente. Então elas decidiram defender os direitos das mulheres. De tanto ela ser essa tal lutadora a fábrica decidiu expulsá-la. Elas criaram a associação depois de serem expulsas decidiram criar uma associação num termo de 10 mulheres. Minha mãe foi expulsa da fábrica, ficou sem casa para morar, atingiu a família toda. Meu pai também foi expulso, pois se ele ficasse na fábrica minha mãe teria uma casa para ficar, então preferiram mandar embora o casal. Fomos acolhidas numa casa de padres, onde fomos vivendo e minha mãe começou a construir uma casa e tornou-se integrante do Fórum Mulher (Dulce, 2017).

 

As criadoras da AMUDEIA reuniram outras mulheres desfavorecidas (solteiras, mães, viúvas), alargando o alcance da organização. Em 2013, a organização contava com 3.353 integrantes mulheres e 277 homens, totalizando 3.630 pessoas em todo o país. A mesma articulava-se em 26 núcleos (12 na Manhiça, 7 na província de Maputo, 3 em Nampula, 2 em Gaza, um em Inhambane e um na Zambézia). Recebeu financiamento de vários parceiros de cooperação, como Action Aid, Oxfam, ACORD, FAO, mas atualmente está com dificuldades financeiras. Sua sede própria fica na Manhiça, conta com duas escolas de educação infantil e áreas de terra. Atualmente reúne 2.500 pessoas, sendo 1900 mulheres e 600 homens, atuando em rede em várias províncias de Moçambique e também no Zimbabwe:

A AMUDEIA agora é internacional, pois assinamos o memorando de apoio com Zimbabwe, onde temos um grupo de mulheres. Em Nampula além da sede já tem muitos núcleos, assim como Mafambisse. Aqui na Manhiça o número de mulheres aumenta cada vez mais. Lá no Norte o número de mulheres era reduzido, estavam muito ligadas na tradição, mas agora estão a abrir a vista e conhecem seus direitos. Alguns homens ainda não compreendem, mas aqueles que estão connosco contam o quanto vem aprendendo a respeitar e valorizar as mulheres. Esses homens são poucos, mas trazem outros homens. Nossa preocupação é abrir a visão das outras mulheres e ir à frente. Ao invés das mulheres estarem fechadas, saírem fora da cova onde estão. Então como estamos sem recursos, estamos em busca de ajuda, porque precisamos dar palestras nas comunidades, já que a violência não para e necessidades das crianças continua (Helena, 2017).

 

Dentro de Moçambique a AMUDEIA é ligada ao FOMMUR e à UNAC (União Nacional de Camponeses), que por sua vez se articula com a Rede Internacional Via Campesina, cujo lema é “Globalizemos a luta! Globalizemos a esperança!”. Adosinda foi uma das lideranças do FOMMUR. Como nos contou a coordenadora do FOMMUR, a camponesa Rebeca Mabui: “A mulher rural é que deve eleger a pessoa que vai coordenar as funções da mulher rural. Na Manhiça nós todas escolhemos a quem vai nos coordenar. A Dona Adosinda é nossa liderança e há outras mulheres nas províncias” (2017).


Ouvimos nos diferentes relatos que Maria Adosinda desconhecia a palavra “não”. Sua firmeza era acompanhada por um coração generoso e uma ternura no olhar. Líder grevista na luta contra a exploração da indústria açucareira, liderou frentes e trilhou caminhos com bandeiras em defesa da vida plena das mulheres. Com sua capacidade visionária moveu muitas lutas, que levaram a conquistas no âmbito dos direitos das mulheres. No excerto abaixo Adosinda fala do sue legado na AMUDEIA:

A Associação é assim mesmo: essas mulheres todas são deste núcleo, todas são o meu fruto e todas sabem falar e fazer. Agora eu já não faço nada, por eu já ouvi e vi que afinal esta mulher está a fazer isto e mais aquilo e eu a dizer: - É isso que eu quero! (2017).

Em 2017, Adosinda enfrentava problemas de saúde, se movia e falava com dificuldade, mas a força das suas palavras, mesmo para falar da dor, contagiava o futuro com esperança. Uma força que emanava do apoio recebido de várias partes de Moçambique e do mundo, e que ela expressava com o brilho do seu olhar, com a certeza de quem criou uma rede de relações para garantir direitos: 

E agora essa coisa de doença está muito mal para mim, mas todas essas mulheres andavam a fazer oração, todas essas mulheres disseram: “Essa mulher não vai morrer!”. Mas eu estava lá no Maputo, três vezes na sala de reanimação! Não é possível! (...) Ali na nossa associação já não vou, apenas vou despedir agora vou fazer minhas coisas porque essas mulheres todas já estão bem lá em Nampula, Beira, estão bem! Também essa coisa de Fórum [Mulher] foi muito bom para mim, muito bom! Mesmo quando foi para fazer ajuda eles estão a me ajudar e essa coisa de países, tenho muitos países de troca de experiência, quando eu vou para lá todos faziam assim [gesto de reverência]! Tenho muita experiência então levei para elas todas, essas sabem, agora estou muito cansada! (2017).

 

A luta pela libertação trouxe para a agenda pós-independência a "emancipação da mulher", mas a aprovação da Lei da Violência Doméstica resultou de uma longa luta e articulação dos movimentos e organizações, que pressionaram com ações públicas de mulheres para a votação na Assembleia da República. Adosinda teve uma participação fundamental nessa mobilização, que reuniu cerca de 400 mulheres. Como narra Graça Samo:

A Adosinda era aquela mulher que quando você dissesse “precisamos marchar”, as mulheres diziam “vamos marchar!”. Ela perguntava “quantas mulheres vocês querem?” E ela ia e mobilizava. Quando o processo da Lei do combate à violência estava a acontecer nós decidimos que íamos acampar no Parlamento, íamos encher o lugar, ocuparíamos até que aprovassem a Lei. Tinha que acontecer, senão ia voltar à estaca zero, porque 2009 estava a mudar uma governação, era ano de eleições, poderia mudar deputados. Adosinda mobilizou mulheres para encher aquele espaço: ela ia para a paragem, desviava um “chapa” para carregar as mulheres e vinham as mulheres todas. Era líder, para ela não existiam limites. Nós estávamos muito articuladas. E elas se sentiam parte, como o processo sendo delas (2018).

 

Como apontou Graça Samo, o papel de Adosinda na mobilização contribuiu para reunir na Assembleia da República centenas de mulheres, que pressionaram as/os deputadas/os para aprovar a Lei. A preponderância do seu papel na mobilização, e articulação das mulheres para a resistência é igualmente reconhecida pela Diretora Executiva do Fórum Mulher, Nzira de Deus.

Adosinda perdeu a vida sem ver a lei ser implementada. A violência contra a mulher está no cotidiano: é física, simbólica, psicológica, sexual, patrimonial, política ou de privação da liberdade, seja na vida pública ou privada. Ela é recorrente, mas também presente na agenda de lutas das mulheres, buscando o entendimento da sua origem, especialmente no contexto dos países do Sul global, acentuada no encontro com a pandemia da Covid-19.


Adosinda não teve medo! Ela nunca teve medo da sua força, e dela muitas vitórias brotaram, da sua vida muitos exemplos são seguidos. Maria Adosinda, ativista, guerreira incansável, dedicou sua vida à luta pelos direitos das mulheres moçambicanas. Deixou como semente muitas “Adosindas”.


Conhecer as histórias dessas mulheres me fez refletir sobre o significado de uma política de gênero para a libertação das mulheres conforme apresentada pela estudiosa e feminista nigério-britânica Amina Mama (2013), no sentido de uma política com potencial transformador de suas vidas em rês dimensões: da subjetividade; do pessoal e dos relacionamentos e da economia política. Segundo esta autora, "a libertação das mulheres requer que superemos a injustiça de gênero em todas as áreas, do nível micropolítico ao macropolítico, sem esquecer ou omitir qualquer nível de luta" (MAMA, 2013:16).


As lutas das mulheres da AMUDEIA são exemplos disso e esses diferentes níveis de transformação estão expressos nas palavras e entendimento de Clara, sobre como a compreensão de gênero e feminismo mudou sua vida:

Sim, mudou muitas coisas, porque eu não sabia nada, nem escrever, nem ler, nem tão pouco meus direitos. Não sabia nada, mas agora já abri os olhos, pode chegar uma pessoa aqui e perguntar o que é AMUDEIA eu vou dizer. Se uma pessoa está a sofrer pois o marido está a lhe bater, eu posso mostrar de que o marido não pode bater. Agora há uma associação que atende as mulheres e educar o homem de que bater numa mulher é uma violência doméstica. E tudo isso aí eu não sabia. O homem que bateu, você conversa com ele e diz que o tempo de agora não é como antigamente. Agora o tempo já mudou, a mulher trabalha fora de casa, o marido ajuda a mulher, a mulher ajuda o marido e os dois podem ajudar nas panelas. Ele quando é o primeiro a voltar do serviço pode pegar nas panelas e cozinhar para quando a mulher chegar possa ajudar a ele e depois falar as palavras boas (2017).



Ainda que no continente, o patriarcado e o colonialismo sejam predominantes, as mulheres resistem e se reinventam a partir de suas necessidades do cotidiano, criando o “feminismo popular” (CASIMIRO, 2014), com resistências criativas e inovadoras. Casimiro (2014) compreende que são as “mulheres do povo” as protagonistas de lutas que carecem de respostas imediatas às necessidades objetivas de sobrevivência e que incorporam reivindicações de gênero. Conhecer a liderança de Adosinda, que com seu exemplo de vida auxiliou a transformar as trajetórias de Amélia, Arlete, Clara, Dulce, Helena e Rebeca, foi um encontro com as vavasati vatinhenha, que produzem a riqueza da vida cotidiana em Moçambique, que trazem possibilidades e esperança da reconstrução das vidas. É no trabalho com a educação de adultos e crianças, sobre os direitos sexuais e reprodutivos, busca pela autonomia econômica das mulheres, a assistência jurídica às vítimas de violência doméstica que elas abrem seus olhos para o direito a uma existência plena, tecem suas lutas no acesso à justiça e buscam um lugar na “festa” fechada do desenvolvimento.


NOTAS

  1. Mulher Guerreira na língua changana.
  2. Vera Gasparetto: Pós-doutoranda no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH/UFSC), Área de Estudos de Gênero, Bolsista PNPD/Capes, pesquisadora do Instituto de Estudos de Gênero, Laboratório de Estudos de Gênero e História/UFSC e do Centro de Estudos Africanos (CEA) da Universidade Eduardo Mondlane (UEM/Moçambique).
  3. Fui acompanhada por Hélder Pires Amâncio, antropólogo moçambicano, para quem teço especiais agradecimentos pela parceria e também pela revisão deste texto.
  4. Direito de Uso e Aproveitamento da Terra.

 

REFERÊNCIAS

  • ENTREVISTA COLETIVA (EC) AMUDEIA. [13 out. 2017]. Entrevistadora: (Vera Gasparetto). Maputo - Moçambique, 2017. 1 arquivos .m4a (01:20:24 min). Entrevista para a pesquisa de Doutorado. Transcrição: (Lázaro Cossa).
  • Dulce. [27 dez. 2017]. Entrevistadora: (VG). Maputo - Moçambique, 2017. 1 arquivos .m4a (20:49 min). Entrevista para a pesquisa de Doutorado. Transcrição: (VG).
  • CASIMIRO, Isabel. Paz na Terra, Guerra em Casa - Feminismo e organizações de mulheres em Moçambique. Série Brasil & ÁfricaColeção Pesquisas 1, Pernambuco, Editora da UFPE: 2014.
  • MAMA, Amina. Várias Autoras. Africana - Aportaciones para la descolonización del feminismo. Colección Pescando husmeos nº 10, Barcelona, 2013. Traducción y compilación: Dídac P. Lagarriga.
  • Rebeca Mabui. Comunicação Oral Formação Política Feminista do FOMMUR, 03/11/2017).
  • SAMO, Graça. Entrevista MMM [27 jan. 2018]. Entrevistadora: (VG). Maputo - Moçambique, 2018. 1 arquivo .m4a (01:39:20 min). Entrevista para a pesquisa de Doutorado. Transcrição: (VG).

 

Como citar

Gasparetto, Vera (2019), "Maria Adosinda ", Mestras e Mestres do Mundo: Coragem e Sabedoria. Consultado a 14.12.24, em https://epistemologiasdosul.ces.uc.pt/mestrxs/index.php?id=27696&pag=23918&entry=36776&id_lingua=2. ISBN: 978-989-8847-08-9