Jacques Távora Alfosin
Algumas pessoas compõem canções, outras pintam quadros ou contam estórias, e há ainda aquelas que fazem revoluções para mudar o mundo. No mar infindável das possibilidades de vida, Jacques Távora Alfosin1 encontrou pela frente, porém, um terreno tradicionalmente nada artístico e revolucionário para mudar o mundo: o Direito. Formado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Jacques entrou para o serviço público em 1965, quando foi aprovado no concurso para “Advogado de Ofício”, equivalente do atual cargo de Defensor Público.
Ao se pensar no Brasil do século passado, é necessário lembrar que o exercício das profissões jurídicas, sobretudo da advocacia, sempre foi marcado pelo enfrentamento de entraves e de procedimentos burocráticos que, antes de dar condições de uma célere e prática realização da justiça, demonstravam muito mais o conservadorismo do ordenamento normativo e o atraso do Direito em relação às demandas sociais. Mesmo dentro deste contexto, Jacques viria a formalizar incontáveis demandas pela defesa e reivindicação dos direitos dos pobres, sendo que em 1975 chegou a ter mais de 500 ações judiciais protocoladas em seu nome. Exerceu seu ofício em várias cidades e órgãos do mesmo estado onde se formou, até o ano de 1992, quando se aposentou na Procuradoria Geral do Estado, estando à época lotado na Defesa do Domínio Público.
Foi, contudo, em 1979, quando o religioso marista Antonio Cechin lhe chamou para fazer uma defesa judicial para pessoas que ocupavam a Vila União dos Operários, na cidade de Canoas/Rio Grande do Sul, que começou a fazer aquilo que denomina hoje como advocacia popular: Ali começou a minha advocacia, tipicamente popular. Diferente da defensoria pública. Porque lá entrou o coletivo em causa, a multidão de pobres. Uma ação envolvendo centenas, milhares de famílias, relatou Jacques em entrevista concedida em 2009.
Em sua trajetória este momento foi, de fato, marcante, pois obrigou-lhe a tomar uma decisão fundamental: ou fechava os olhos para a desigualdade social e exercícia seu ofício no espaço fechado de seu gabinete, ou utilizava seus conhecimentos para batalhar por um mundo possível, como gosta de falar. Optou pela segunda, e passou a uma relação profunda com a vida para a qual dedicaria seu ofício: a do/as oprimidos e oprimidas que, por estarem na condição de miserabilidade, sequer tinham a oportunidade de um profissional jurídico que buscasse a defesa de seus direitos. Da sala de trabalho do seu escritório, foi então a campo, para ver, ouvir e experenciar a vida que era vivida pelas pessoas que representava nos tribunais. A cada momento de contato, convencia-se mais da [...] subhumanidade a que é reduzida o povo que não tem casa, nem comida, declarou. Por esta razão, desdobrou-se tanto a entender o que era efetivamente demandado pelas pessoas como a compreender o que diziam as fontes mais tradicionais do direito, o que lhe obrigou ao trabalho árduo e constante de traduzir a vida para o direito, no escopo de permitir que este fosse percebido como um meio efetivo de garantia daquela.
Justamente por esta disposição de vida, é que desde as primeiras ações como advogado popular viu passar pelo seu conhecido escritório no centro histórico de Porto Alegre (denominado Acesso – Cidadania e Direitos Humanos) incontáveis aprendizes de sua arte. É emblemático que em 2002, um grupo de estudantes do Núcleo de Assessoria Jurídica Popular (NAJUP) bateu à porta do seu escritório buscando aprender com sua advocacia popular os caminhos jurídicos para a concretização de um outro direito, mais justo e solidário. Passaram então a reunirem-se todas as semanas e, no olhar atento e nos diálogos acalorados de cada encontro, descobriam a estreita relação entre a mudança de lugar social e a consciência crítica sobre o paradigma dominante do direito. No acompanhamento das inúmeras demandas dos movimentos sociais que chegavam ao seu escritório – em geral por terra, trabalho, alimentação e moradia – vivenciavam de perto o que o Jacques há muito alertava: que na ideologia do sistema jurídico vigente, as demandas populares são consideradas muito mais contrárias à letra da lei do que dignas de defesa. E que, por isso mesmo, são nas frestas, ao lado ou ainda contra a própria lei que se pode alcançar a justiça social. Ainda hoje, o escritório e a advocacia de Jacques inspiram estudantes de todo país na prática da assessoria jurídica popular.
Em certa medida, mesmo dentro de uma academia tradicional, é possível perceber que o Direito não contém todas as repostas possíveis aos problemas mundanos. Aprender a partir do contato direto com a realidade é, portanto, tarefa necessária a qualquer jurista. Ocorre que, ao contrário do que tradicionalmente se ensina nas faculdades de Direito, a prática jurídica levada a termo por tantos anos por Jacques Alfonsin transmitiu a certeza de que aquilo que escapa à literalidade descompromissada dos textos legais não pode ser entendido meramente como “lacuna” do direito ou como “método interpretativo auxiliar” para a subsunção jurídica mais básica. Seriam, antes disso, formas válidas de direitos sociais, os quais inspiram a resistência, promovem a fraternidade e dão a quem vive na margem do sistema a atenção necessária e o reconhecimento devido.
Aliás, por perceber que a diversidade do mundo é composta de saberes e práticas que fogem completamente à unicidade estrutural da pirâmide jurídica monolítica, a práxis por ele orientada sempre fez o instrumental jurídico operar em escala, modo e tempos diferentes afinal, se por um lado, se introduzia do ideário jurídico novas ideias e conceitos, de outro tolhia-se do intérprete desavisado o benefício da repetição acéfala e da mesmice vertebral dos compêndios jurídicos. O próprio Jacques já disse que [...] aqui no nosso país, servem de exemplo as terras indígenas, nas quais a propriedade privada, um dos direitos mais protegidos pelas nossas leis, era e ainda é, em muitas delas, totalmente alheia ao seu modo de vida. Ao jurista, portanto, Jacques deu o privilégio de ver uma realidade sonegada pela cultura brasileira e, mais que isso, fazer dela um espaço-tempo diferente para ações e saberes.
No âmbito da luta judicial, Jacques tem levado a cabo um uso nada hegemônico do direito, exigindo a aplicabiliade de normas constitucionais de direitos fundamentais e criando teses interpretativas em defesa das reformas agrária e urbana, sempre ao lado das práticas políticas dos movimentos populares que asssessora. Nesta luta jurídico-política, encontra nas normas positivadas e nas brechas do próprio sistema, os argumentos necessários para a defesa das ocupações coletivas de terra como legítimo exercício da cidadania, denunciando que o direito de propriedade (considerado absoluto na lógica liberal e individualista) está condicionado ao cumprimento da sua função social e às exigências do bem comum.
Em 1998, como advogado de 600 famílias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, que ocupara a Fazenda Primavera no Estado do Rio Grande do Sul exigindo a reforma agrária, Jacques encontrou repercussão para suas teses no campo judicial e conseguiu garantir às famílias sem-terra a possibilidade de permanecerem na área ocupada: hoje é um assentamento espetacular, onde floresce uma reforma agrária que deu certo. Embora o caso tenha se notabilizado e repercutido em diversos Tribunais no país, Jacques não alimenta ilusões: [...] contra o sistema, perde-se quase sempre, ganha-se pouquíssimas vezes. Porém, não cede lugar à tragédia: [...] cada ganho de causa representa muito mais do que todas as perdas, porque abre fendas no sistema, indica caminhos para atuações futuras e, mais importante, gera efeitos significativos para muitas famílias.
Sem a visão romântica da luta política e jurídica, Jacques Alfonsin mostra com seu trabalho enquanto advogado popular que as conquistas são lentas, difíceis e encadeadas numa sequência de inúmeras derrotas. E a luta, diz ele, não é apenas sua própria luta, mas a luta do povo por emancipação: a petição é sempre silenciosa se não for alimentada por esse povo. Isto é, seu advogar não é encher a petição de suas próprias razões enquanto advogado mas, ao contrário, é valorizar a organização popular e fazer entrar no castelo da justiça tradicional aquilo que o povo que defende acha mais apropriado – daí sua afirmação de que ter uma procuração para si assinada é levar muito à sério o significado da palavra “mandato”, ou seja, mãos-dadas com o povo.
Vale apontar, esta prática, embora bastante lógica desde a ideia de advogar o interesse de alguém, não representa o pensamento estandardizado no cenário jurídico nacional brasileiro, eis que toda a formação jurídica nacional é orientada para a defesa de causas em função de ideários de rentabilidade, recebimento de honorários, vitória dos interesses privados sobre o interesse público (até mesmo quando se fala na Administração Pública e no seu suposto “interesse secundário”, enquanto pessoa jurídica individualizada). Por tais razões, a práxis da advocacia popular vai de encontro à lógica da advocacia tradicional: os interesses de quem recebe o mandato não se sobrepõem ao interesse jurídico buscado; realiza-se a partir da troca permanente de informações e experiências entre advogada/os; assim como da reflexão conjunta sobre as estratégias jurídico-políticas a serem adotadas na defesa de direitos humanos ameaçados ou já violados.
Assim, lide após lide, batalha judicial após batalha judicial, Jacques tem mostrado que o exercício da advocacia popular não segue à repetição vazia dos textos, à inanição ideológica e ao mero silogismo de subsunção. Colhe-se de sua história, por isto, que a advocacia popular, embora técnica e profissional, possui uma face axiológica. É, antes de tudo, uma advocacia identificada político-ideologicamente com as lutas sociais e com o reconhecimento da alteridade, pela qual advogadas e advogados partilham com seus/suas assessorados/as mais do que a lógica abstrata do processso judicial; partilham as possibilidades e as impossibilidades, os ganhos e as derrotas, as esperanças e os sofrimentos.
É com esta inspiração – muito associada à Teologia da Libertação – que Jacques adverte nas conversas com as/os estudantes das assessorias jurídicas universitárias, a profunda diferença entre trabalhar com o povo e não para o povo: um aspecto político-pedagógico fundado na relação de companheirismo, em que advocacia popular não dispensa os saberes dos grupos que assessora, garantindo a devida sustentação jurídica sem, todavia, interferir na emancipação política do povo.
E ao trabalho cotidiano da advocacia popular, exercido ao longo de mais de quatro décadas em defesa dos movimentos populares de sem-terra, sem-teto, quilombolas, catadores e catadoras de lixo, trabalhadoras domésticas e rádios comunitárias, soma-se o fato de que ao lado de outros colegas, Jacques foi um dos fundadores da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP). Criada em 1995, a Rede foi impulsionada pelo urgente apoio jurídico de que necessitavam os movimentos de luta pela terra numa conjuntura marcada pela intensa criminalização dos movimentos sociais. Atualmente a RENAP articula dezenas de advogadas e advogados populares em todo o Brasil, tornando-se uma referência no trabalho jurídico popular no país e em outros países da América Latina.
Como reconhecimento por sua atuação dedicada às causas populares, Jacques veio a receber em 2013 a medalha do Negrinho do Pastoreiro, maior comenda concedida pelo Poder Executivo do Estado Rio Grando do Sul a personalidades que prestam revelante serviços às causas sociais. O nome “Jacques Távora Alfonsin” entrou, assim, para o história como uma referência da luta popular pelos direitos humanos fundamentais e de uma advocacia não clientelista, não patrimonializada.
Sua posição enquanto Mestre do Mundo pode ser pensada a partir de um outro ponto: desde o encontro em 1979, na Vila União Operária, haveria de se desenhar para Jacques uma vida de dedicação e trabalho com o povo, a qual pode não só oxigenar o direito e fazer repensar o acesso à justiça mas, principalmente, inspirar e engajar as gerações seguintes de advogadas e advogados populares. De fato, a se pensar a advocacia popular brasileira na década de setenta – época de ditadura civil-militar – talvez não se pudesse perceber mais do que incertezas e desconfianças acerca desta prática, como se o mundo jurídico precisasse ser reinventado para que ela tivesse seu lugar.
Jacques Távora Alfonsin, dedicou a sua vida ao mar inquieto das reivindicações sociais e das (des)esperanças, motivo pelo qual hoje milhares de pessoas possuem um lugar para morar, um pedaço de terra em que possam trabalhar e viver dignamente. Em outras palavras, Jacques nunca parou de praticar e ensinar um direito que luta, antes do mais, por justiça. Nunca deixou sossegar no coração de quem o conheceu a esperança de um outro e possível mundo. É, por isto, um mestre. Um lutador imprescindível.
1 O presente texto foi escrito com base na percepção dos Autores sobre Jacques Távora Alfosin enquanto advogado popular, levando-se em consideração seu legado teórico e prático, além de duas entrevistas presenciais: a primeira realizada por Flávia Carlet, em 02.02.2009 e a outra realizada por Fernando David Perazzoli, em 15.11.2014.
Fernando David Perazzoli - Doutorando em “Direito, Justiça e Cidadania no Século XXI” pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.
Flávia Carlet - Doutora em “Direito, Justiça e Cidadania no Século XXI” pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Colaboradora da Rede Nacional dos Advogados e Advogadas Populares.
Referências
ALFONSIN, Jacques. Das Legalidades Justas às Ilegalidades Injustas: estudos sobre direitos humanos, sua defesa por assessoria jurídica popular em favor de vítimas do descumprimento da função social da propriedade. Porto Alegre: Armazém Editora, 2014
______. Dos nós de uma lei e de um mercado que prendem e excluem aos nós de uma justiça que liberta. Em: Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares. Advocacia popular: caderno especial – 1995-2005 - 10 anos. Cadernos Renap, São Paulo, n. 6, p. 83-104, mar. 2005.
______. O acesso à terra como conteúdo de direitos humanos fundamentais à alimentação e à moradia. Porto Alegre: Safe, 2003.
Como citar
Perazzoli, Fernando; Carlet, Flávia (2019), "Jacques Távora Alfosin ", Mestras e Mestres do Mundo: Coragem e Sabedoria. Consultado a 03.12.24, em https://epistemologiasdosul.ces.uc.pt/mestrxs/index.php?id=27696&pag=23918&entry=39643&id_lingua=1. ISBN: 978-989-8847-08-9