Mário Vitória (2013) A liberdade comovendo o povo [tinta da china e acrílico s/papel, 50x65cm]

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Fernando Perazzoli, Flávia Carlet

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Leila Khaled

Joana Ricarte
Publicado em 2021-03-17

Don’t Forget the Struggle

 

No dia 29 de Agosto de 1969, a bela palestiniana que fazia lembrar a atriz britânica Aldrey Hepburn preparava-se para apanhar o voo TWA 840 que sairia de Roma com destino à Tel Aviv. Sua aparência jovem e atraente, elegantemente vestida toda de branco - como muitos lembravam à época -, escondia suas reais intenções: Leila Khaled e seu comparsa sequestrariam este avião e desviariam sua rota. Pousando posteriormente em Damasco, mas não sem antes pedir ao piloto que fizesse um desvio e sobrevoasse Haifa, sua cidade natal da qual tinha poucas lembranças, Leila Khaled não atingiu seu principal objetivo. Como repetiu muitas vezes para os passageiros durante o voo, o sequestro de um avião comercial não tinha a intenção de aterrorizar civis que nada teriam a ver com a sua causa mas, sim, levar a julgamento um criminoso israelense que teria matado milhares de palestinianos. Mas na última hora, o então Embaixador de Israel nos Estados Unidos, Yitzhak Rabin, decidiu não embarcar. Contudo, este episódio fortemente midiático tornou, para o seu próprio espanto, a imagem da bela mulher-árabe-terrorista mundialmente famosa.


A história de Leila Khaled é a história de muitos palestinianos. Nascida em 1944, em Haifa1, sua família viu-se forçada a abandonar seu lar ainda em criança, devido à Nakba (catástrofe) que recaiu sobre os palestinianos com o estabelecimento do Estado de Israel e a guerra com os povos árabes vizinhos que ocasionou um êxodo maciço da população autóctone da Palestina. Tornou-se refugiada com apenas quatro anos de idade, quando Haifa, que era Palestina, tornou-se Israel. Crescer no exílio levou a uma forte politização de uma mulher que, ainda muito jovem, decidiu ingressar no Movimento Nacionalista Árabe e, posteriormente, na Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP), uma organização Marxista revolucionária inspirada nas ideias de figuras como Che Guevara e Fidel Castro. Suas ações como membro desta organização eternizaram sua imagem como ícone da luta pela libertação palestiniana, tornando Leila mundialmente famosa por ter sido a primeira mulher a sequestrar um avião (Irving, 2012: 6-10).


Leila Khaled ficou conhecida por atos de terrorismo, ao que ela mesma responde em entrevista no documentário Leila Khaled: Hijacker que “o terrorismo dos vencedores e o terrorismo dos perdedores parecem ser coisas diferentes”. O que fizeram era uma estratégia midiática para atrair a atenção internacional para a luta – alvo de uma poderosa campanha de silenciamento - de libertação de seu povo. Considero, contudo, importante ressaltar que Khaled não era apologista do uso da violência contra civis e que nenhuma das duas ações de sequestro de aviões comerciais, levadas a cabo por ela, resultaram em mortos ou feridos. Pelo contrário, parece-me muito curioso observar os relatos dos passageiros de ambos os voos, que retratam Khaled como uma mulher gentil que esteve sempre preocupada em lhes assegurar a sua segurança (Irving, 2012: 35). Em sua biografia, escrita juntamente com o acadêmico libanês George Hajjad em 1971 e que levou dois anos para ser publicada, ela explica que, apesar de defender o direito do povo palestiniano de utilizar da luta armada para se defender da ocupação, não é a favor do envolvimento de civis:


Nós fomos instruídos a não machucar ninguém. A primeira coisa é: vocês não estão lá para matar ninguém, estas pessoas não têm nada a ver com este conflito. Depois, vocês têm que pedir desculpas a elas, e tratar a tripulação com leveza. Eu era a única que estava aterrorizada. Eu tive que falar com eles, falar com as estações de controle de tráfego aéreo. Salim estava apenas sentado lá, seu papel era proteger-me”2 (Khaled, 1973: 44).


Mas, para muitas pessoas, isto simplesmente transformou os palestinianos de um grupo que nunca antes tinham ouvido falar em um grupo que eles associavam irrevogavelmente à palavra “terrorista”. Para Lina Makboul, diretora cinematográfica de origem palestiniana que diz que Leila Khaled foi sua heroína durante a adolescência, o seu documentário Leila Khaled: Hijacker foi em parte uma busca pessoal para descobrir como Khaled se sentia relativamente à ideia de que ela teria sido substancialmente responsável pelo estereótipo de terrorista que Makboul e muitos outros palestinianos enfrentaram, e pelo sofrimento de milhares de palestinianos comuns em eventos de retaliação por suas ações. Mas, Khaled não se arrepende do que fez: “quando eu sequestrei o avião as pessoas passaram a se perguntar quem nós éramos. Independentemente do que pensavam, elas se perguntaram. Quando somos torturados por israelenses, quem nos ouve a gritar?”3.


A vida e a voz de Leila Khaled não se restringem às táticas, certamente passíveis de discussão, que utilizou como parte de sua luta. Em uma sociedade iminentemente machista, Leila deu a conhecer mundialmente a causa palestiniana por ser uma mulher jovem e bonita, que ousou assumir um papel restrito aos homens para se fazer ouvir. Leila mostrou ao mundo que o conflito no Médio Oriente não se reduzia ao conflito entre árabes e israelenses. Havia uma identidade maior, feita invisível pelos que tanto tentaram, e tentam, suprimi-la. Uma identidade deliberadamente esquecida pelo resto do mundo que, através da Organização das Nações Unidas, dividiu a Palestina histórica entre árabes e judeus com seu Plano de Partilha. Uma identidade cuja inexistência retórica tem sido politicamente instrumentalizada pelos que advogam a ocupação de “uma terra sem povo, para um povo sem terra”. A identidade palestiniana sobrevive às tentativas históricas de sua negação. E Leila Khaled teve e tem um papel importantíssimo na sua legitimação internacional e consolidação política. Leila Khaled é, por isso, Mestra dos palestinianos.


Desde cedo, Khaled defendeu o seu direito – e sua capacidade como mulher - a um papel ativo e combativo na resistência ao imperialismo e na luta anti-colonial. Negando a ideia de que há táticas de luta que devam prevalecer como iminentemente masculinas, conquistou um espaço de grande respeito junto aos seus camaradas, atingindo altos postos de liderança política. Sua iconografia, uma figura forte e feminina, deriva de uma famosa foto na qual carrega uma Kalashnikov vestida com um hijab na cabeça e levando um sorriso no rosto. Esta imagem ficara tão famosa após o seu primeiro sequestro de um avião, em 1969, que Khaled optou por fazer diversas cirurgias plásticas com o intuito de possibilitar a continuação da sua ação enquanto combatente. Em 1970, voltou à ação com o sequestro do voo 219 da companhia aérea israelense El Al. Contudo, esta ação foi mal sucedida, levando à morte do seu acompanhante e à sua detenção em Londres. Após quase um mês sob custódia britânica, Khaled foi trocada por reféns ingleses e, sendo um alvo muito visado pelos serviços de inteligência israelenses, passou à clandestinidade.


A importância histórica de Leila Khaled não está restrita a estes dois momentos nos quais a palestiniana esteve na mira da mídia Ocidental. É justamente a partir da intensificação da sua militância política que a voz de Khaled passa a ser uma voz que transcende a sua causa. Para além das diversas ações de apoio humanitário em campos de refugiados e apoio logístico à luta armada, Khaled ingressa definitivamente na vida política na década de setenta, assumindo cargos de liderança junto à Frente Popular para a Libertação da Palestina e envolvendo-se no movimento das mulheres palestinianas, em 1973. Enviada pelo partido e, apesar de relutante, passa a assumir posições representativas na União Geral das Mulheres Palestinianas (UGMP). Até então, não via sua causa como a causa das mulheres e incomodava-a a ideia de misturar uma luta nacionalista com uma luta de género.


Contudo, um divórcio e duas gravidezes resultantes do segundo casamento a fizeram pensar acerca do papel da mulher na luta pela libertação e, principalmente, do papel que se esperava da mulher nos movimentos de resistência. Se, por um lado, era aceitável um período de ativismo como parte do processo de mocidade, quando adultas e em idade de contrair matrimônio, era esperado que as mulheres priorizassem as responsabilidades familiares, domésticas e de criação das crianças. E aquelas que permaneciam no movimento ou que tentavam empurrar as fronteiras políticas ao levantar assuntos “de mulheres” eram frequentemente acusadas de serem promíscuas e de terem comportamento impróprio. Leila teve mais uma vez um papel de protagonismo, influenciando as atitudes e estruturas do partido com as suas próprias experiências diretas:


Eu tinha que conciliar o trabalho e as crianças (...) então começámos a discutir a questão das mulheres camaradas que se tornavam mães no partido; que todas as mulheres estavam tomando conta das crianças mas e os homens!? Então nós decidimos que todos os camaradas são responsáveis por cuidar das crianças (Khaled, 1973: 25).


Na década de oitenta, Khaled foi eleita para o Conselho Nacional Palestiniano e passa a trazer a questão das mulheres, bem como a discussão acerca da representatividade de gênero nas altas instâncias deliberativas do povo palestiniano. As conferências internacionais de que passa a participar abrem ainda mais o seu horizonte, humanizando a sua luta quando, relutantemente, percebe que tem uma causa em comum inclusive com mulheres israelenses. Leila Khaled apercebe-se que, como mulher de esquerda, sua identidade de género não pode ser desvinculada do movimento e deve ser também pensada sob o ponto de vista da luta de resistência na medida em que esta identidade como mulher é muitas vezes obscurecida pela sua identidade como sujeito nacionalista de esquerda. Ou seja, Khaled apercebe-se de que não pode tomar como garantida a relação entre a liberação nacional e as liberdades individuais/ das mulheres.


As mulheres como seres humanos – nós não estamos falando sobre as mulheres como biologicamente diferentes dos homens – eu acho que nós estamos sob uma opressão complicada. Nós estamos sob ocupação, e nisto nós somos iguais aos homens na opressão. Nós somos refugiadas, e também somos iguais aos homens nisto. Ao mesmo tempo, há uma opressão social e é forte quando as mulheres pegam em armas; elas estão tentando participar na luta nacional e também na luta social (Khaled apud Irving, 2012: 94).

 

Leila Khaled é uma Mestra das mulheres.


Leila Khaled afirma que não pretende gozar a reforma. Enquanto a elegerem, ela fará parte da luta pela libertação palestiniana, e não só. Atualmente é membro do Conselho Nacional Palestiniano4 e, ao longo dos anos, envolveu-se em diversas causas, militou contra o regime de apartheid na África do Sul, passando a ser uma figura ativa nas lutas globais contra diversas formas de racismo, colonialismo, imperialismo, sexismo e opressão.  Participa ativamente das campanhas de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) e no Fórum Social Mundial. Fala em nome das mulheres, em nome dos refugiados, em nome dos excluídos. Leila foi é uma inspiração para as lutas de resistência, tanto na Palestina quanto fora dela. Por mais que a tentem silenciar, Leila Khaled, voz do Sul global, é Mestra das/os oprimidas/os.


Leila Khaled, palestiniana, refugiada, ativista, terrorista. Leila Khaled, filha, mãe, esposa, mulher. Leila Khaled, combatente, marxista, militante feminista. A sua luta é uma luta pessoal e íntima mas é também, e sobretudo, coletiva pela igualdade, pela liberdade, pela emancipação feminina e pelo reconhecimento da mulher como sujeito ativo e combativo na resistência contra diversas formas de opressão. Khaled não é só a voz das mulheres, ela é a voz dos que foram forçosamente deslocados de suas casas e de sua terra, ela é a voz dos refugiados de guerra e dos que não têm tido direito de narrar sua própria história. É por isto que Leila Khaled deve ser considerada uma Mestra dos palestinianos, uma Mestra das mulheres, uma Mestra dos oprimidos, uma Mestra do mundo.

 

 

Notas

1 Conhecida por ser “a cidade da coexistência”, apesar de contar com uma população atualmente formada em mais de 80% apenas por judeus.

2 Todas as traduções são minhas.

3 Trecho de uma entrevista no documentário Leila Khaled: Hijacker.

4 Este texto foi escrito em 2016.

 

 

Referências

Khaled, Leila (1973) My People Shall Live. Londres: Hodder & Stoughton.
Makboul, Lina (2005) Leila Khaled: Hijacker. Documentário (www.leilakhaled.com)
Irving, Sarah (2012) Leila Khaled: Icon of Palestinian Liberation. Londres: Pluto Press.

 

 

Como citar

Ricarte, Joana (2019), "Leila Khaled", Mestras e Mestres do Mundo: Coragem e Sabedoria. Consultado a 14.10.24, em https://epistemologiasdosul.ces.uc.pt/mestrxs/index.php?id=27696&pag=23918&entry=33528&id_lingua=1. ISBN: 978-989-8847-08-9