Violeta Parra
Violeta Parra da terra e do céu:
vida e voz da resistência latino-americana
“-Violeta, usted es poeta, música, borda tapicerías, pinta.
¿Si tuviera que elegir uno de estos medios de expresión cual escogería?”
Elegiría quedarme con la gente.
Son ellos quienes me impulsan a hacer todas estas cosas2.
Violeta Parra
Humana e divina3, Violeta Parra é filha da terra e do céu - flor do chão campesino, alta estrela do firmamento latino-americano. Nascida em 1917 no interior rural do sul do Chile, jamais afastou-se dele, mesmo em suas andanças país adentro, mundo afora. Filha de Clarisa Sandoval, costureira e cantora popular, e Nicanor Parra, professor de música, seu canto precoce, em dor e em fulgor, ecoou forte no céu do continente e lá tornou-se universal, ao menos para aquelas e aqueles que, como ela, lutaram por um mundo mais justo e parelho, seja por sonho do espírito ou por necessidade do corpo, ou por ambos, como costuma ser nessas terras.
Pablo Neruda, seu amigo e conterrâneo, celebrou-a em versos:
Ay que manera de caer hacia arriba y de ser sempiterna, esta mujer!
De cielo en cielo corre o nada o canta la violeta terrestre:
la que fue, sigue siendo,
pero esta mujer sola
en su ascensión no sube solitaria:
la acompaña la luz del toronjil,
del oro ensortijado
de la cebolla frita,
la acompañan los pájaros mejores,
la acompañan Chillán en movimiento.
Pablo Neruda4
Violeta teve seu percurso talhado pelas necessidades – primeiro, como filha do campesinato, viveu a pobreza de condição e a subordinação aos poderes dos patrones ou senhorios rurais (como a maior parte da população chilena à época). Depois, com o forçoso êxodo para a cidade, experimentou misérias várias, violência e preconceito. Não à toa, ao lado dos relatos nostálgicos sobre as alegrias da vida campesina, figuram a morte e a pobreza como temas recorrentes em suas obras. Talvez por conhecer bem o sofrimento e a adversidade impostos, dizia que era preciso escolher sempre que possível, posicionar-se perante a vida e a morte, em favor da liberdade e contra toda forma de opressão.
Também Violeta lutou o quanto pôde para definir seu caminho. Seu espírito inquieto, livre e genial, encontrou abrigo e alimento nas artes e nos saberes ancestrais e mestiços de seu povo. Neles, ela fez seu ninho, cresceu e se fortaleceu:
Mi paso es retrocedido mientras el de ustedes avanza,
el arco de las alianzas ha penetrado en mi nido
con todo su colorido se ha paseado por mis venas
y hasta la dura cadena con que nos ata el destino
es como un diamante fino que alumbra mi alma serena.
Violeta Parra – Volver a los 17
Ali, na urdidura rica e complexa do imaginário popular de seu tempo e lugar, teceu-se e foi tecida, tal seus ponchos araucanos, qual suas tapeçarias ou arpilleras de coloridas lãs. Moldou e foi moldada, pintou e foi pintada, como suas cerâmicas de Quinchamalí, suas esculturas em arame e argila, suas telas a óleo ou peças em papel maché. E, claro, cantou e foi cantada, como os cânticos folclóricos campesinos – cuecas e tonadas – que resgatou, cuidou e eternizou:
Cuando se trata de bailar la cueca
De tu guitarra no se libra nadie
Hasta los muertos salen a bailar
Cueca valseada […]
¡Nadie puede quejarse cuando tú
Cantas a media voz o cuando gritas
Como si te estuvieran degollando
Viola volcánica!
Nicanor Parra – Defensa de Violeta Parra5
Engenho de insurgências mil, suas obras deram potência e multiplicaram o alcance de seu espírito contestador. Canções icônicas como Gracias a la vida e Volver a los 17 significaram preciosos bálsamos para muitos movimentos sociais de resistência, especialmente os que se levantaram contra as ditaduras militares que tomaram parte dos países latino-americanos nos anos 70 e 80. Sem dúvida, seu legado pode ser facilmente reconhecido hoje, a aquecer ânimos rebeldes pelo continente.
Generosa com os pares, genial em suas expressões, era geniosa também, e furiosa com as injustiças: a veces atacabas con relâmpagos, disse-lhe Neruda. Violeta ensinou que é possível resistir a toda sorte de dominação como ela fez: com os pés fincados no chão, os sonhos no céu comum da humanidade que nos habita e os olhos no mais fundo dos olhos uns dos outros, das outras.
Por essa razão, Violeta é para nós, latinoamericanas/os, uma Mestra do Mundo. Mestra da resistência feminina, pobre e campesina, dos povos originários, dos saberes populares, tradicionais e orais, entranhados aos seres de toda natureza, que observava com raro tino no cotidiano. Ou seja, Violeta lutou, municiada de arte e de trabalho, pelo direito coletivo de existir ao modo dos seus, com valores humanistas, comunitários e ancestrais, em meio às dores e angústias próprias da pobreza, da doença e das desigualdades. E entre a crueza das circunstâncias e a generosidade de seus coletivos de pertença, forjou e ensinou esse modo de viver e de resistir: impávida com o injusto, amorosa com os seus, tão livre quanto possível, qual os pássaros da sua cordilheira.
Violeta era uma multidão. Multidão feminina, todas inquietas, altivas e intensas em desejo, angústia e potência criativa. Fez-se música, compositora, instrumentista, poeta, radialista, artista plástica, tecelã, ceramista. Em meio a esses ofícios foi também agricultora, costureira, cozinheira, lavadeira, garçonete, animadora de circos populares: “No existe empleo ni oficio/ que yo no haya ensayao,/ después que mi taita6 amao/ termina su sacrifício”, escreveu (Parra, 2006: 133-134). Soube também ser colo de mãe e amor livre de mulher, ainda que constrangida pela força do patriarcado de seu contexto. Casou-se e separou-se três vezes e teve quatro filhos: Isabel, Ángel, Carmen Luisa e Rosita Clara (falecida precocemente).
Correu o país – costa, ilhas e cordilheira – em seu trabalho maior: o de investigadora, professora, produtora e difusora dos saberes de seu Chile popular, ameaçados pela modernidade e pela expansão da cultura de massas:
Absorbida por esta nueva inspiración, desaparecía de su casa a veces por quince días, recorriendo algún campo, instalándose con paciencia en un caserío. Allí debía lograr que los más antiguos habitantes abandonaran sus aprehensiones, comenzaran a acompañarla en los cantos, se decidieran a soltar prenda y entendieran lo que ella venía a hacer. Violeta, cuaderno y lápiz en mano, anotaba posturas, rasgueos y letras, impregnándose de la manera profunda y simple del quehacer campesino, de sus gestos, de todo ese protocolo natural exento de pose. (Sáez apud Farias, 2007: 77)
Mais tarde, viajou e viveu pela Europa sozinha e logo em companhia dos filhos mais velhos e da neta. O Festival de Juventudes do Mundo (socialista), na Polônia, foi especialmente marcante para ela, como experiência reveladora de sua identidade cultural e de classe e do internacionalismo de seus valores: “América allí presente / con sus hermanos del África, / empieza la fiesta mágica / de corazones ardientes, / se abrazan los continentes / por ese momento cumbre / que surge una perdidumbre / de lágrimas de alegría, / se baila y cant’a porfía, / se acaban las pesadumbres.” (Parra, 2006: Décimas 73). Lá trabalhou duro e aprendeu muito, alcançando, com efeito, inédita notoriedade internacional. Nunca se viu livre, porém, de tormentos importantes, inclusive, das incertezas quanto à manutenção da vida, algo que a acompanhou até a morte, por suicídio, em 1967.
Não será possível nem é meu propósito traçar sua biografia aqui. Ela o fez com rigor e originalidade magistrais, na forma de décimas poéticas (Parra, 2006). Para falar de algumas de suas faces, faremos uso de retratos textuais: pequenos textos-contos baseados na sua obra, a partir das narrativas de pessoas que foram tocadas pelo encanto de Violeta - essa feiticeira de grande poder, como bem a descreveu o irmão Nicanor.
1. Violeta campesina, Viola de los pobres
A identidade com a terra campesina de Violeta Parra estendia-se a seus habitantes, reconhecendo nelas, neles, as diferenças de classe e as injustiças delas advindas. Também na cidade enfrentou um sem-fim de precariedades, como ela narra a seguir, em décimas dirigida ao irmão Nicanor. Nelas, nota-se claramente sua identidade de classe. É traço que percorre toda sua obra, como em Y arrriba quemando el sol, quando retrata com funda dor o sofrimento dos trabalhadores mineiros.
No sabís cuánto dolor,
miseria y padecimiento
me dan los versos qu’encuentro;
muy pobre está mi bolsillo
y tengo cuatro chiquillos
a quienes darl’ el sustento.
[…]
Ellos cantan los dolores,
llenos de fe y esperanzas;
algotros piden mudanzas
de nuestros amargos males;
fatal entre los fatales
voy siguiendo estas andanzas.
Violeta Parra (2006)
2. Violeta artista de revoluções
En el año 1958 y obligada a reposo después de una hepatitis, Violeta Parra comienza a bordar, pintar, esculpir greda [argila]. […] [Las obras] reflejan escenas de la vida cotidiana, quehaceres y oficios diversos, historias, leyendas, mitos, cuentos, personajes de la cultura popular: el manicero, el chinchinero, el payaso, la bailarina, los cantantes, la cueca. Hechos históricos de Chile, batallas, denuncias, represión, injusticias, temas religiosos, fiestas tradicionales, músicos, cantoras y cantores campesinos, tocadores de guitarrón, familiares, amigos, hijos, nieta. Fiestas en la casa y presentaciones musicales de los Parra son temas recurrentes. Decía Violeta: “Las arpilleras son la parte hermosa de la vida y las pinturas la tristeza de la existencia”. […]. La temática de sus obras es “canciones que se pintan y bordan”.
Isabel Parra (2007: 19)
E, assim, paulatinamente Violeta torna-se uma artista universal e consagra-se no meio da arte contemporânea. Em seu trabalho, é patente uma concepção de artista que a todos/as engloba, fundada na cultura popular, e um projeto artístico revolucionário a partir dele – arte e artista integrados à vida mesma, junto do povo e de seus labores cotidianos:
La forma en que Violeta entendía el arte y cómo debía desenvolverse el artista se grafican en su exposición en el Museo del Louvre o en la Carpa de La Reina. En estos ejemplos Violeta llega a desenvolver su sistema teórico y artístico a cabalidad. Crea un espacio donde expone sus arpilleras, óleos y esculturas, mientras bordaba otra arpillera mostrando el proceso de creación y luego cantaba sus obras. En la Carpa, además, bailaba y cocinaba junto a la calidez del fogón. Esa es su propuesta artística, un sistema donde el sujeto creador fusiona e integra la música, la poética y la visualidad para lanzar su discurso al público. Y este discurso, portador de sus ideas y conceptos, está presente tanto en su trabajo musical, poético como en el visual.
Viviana Hormazábal (2013: 191)
3. Violeta mestiça y mapuche
Violeta Parra no podía llamarse mapuche porque sabía que era una cultura a la que se debía respetar y mostrar en su autenticidad, sin disfraces, pero sí se reconocía mestiza, “mi abuela era india, mi abuelo era español, así que yo tengo un poquito de india. Estoy enojada con mi madre porque no se casó con un indio. De todas maneras, ves tú cómo yo vivo... un poco como los indios.” Las lecciones que Violeta extrajo del mundo Mapuche, componente importante del mestizaje nacional, las lleva también a un nivel vital. No introduce esas enseñanzas a la esfera del arte y las aplica ahí, en esa especificidad, sino que las practica tal cual. La vuelta a lo primario que significó para Violeta el instalarse en una casita al lado de su Carpa, con piso de barro, en el contacto directo con la naturaleza y sin comodidades significa el regreso del arte a la vida, su invasión en la cotidianeidad, en el día a día. El arte debe ser una expresión más del Todo, hace parte del conjunto que es la vida.
Viviana Hormazábal (2013: 192)
Com efeito, não há canto anticolonial que faça ecoar mais fundo o lamento mapuche como Arauco tiene una pena:
Un día llega de lejos
Huescufe conquistador,
buscando montañas de oro,
que el indio nunca buscó,
al indio le basta el oro
que le relumbra del sol.
Levántate, Curimón.
Entonces corre la sangre,
no sabe el indio qué hacer,
le van a quitar su tierra,
la tiene que defender,
el indio se cae muerto,
y el afuerino de pie.
Levántate, Manquilef. […]
Del año mil cuatrocientos
que el indio afligido está,
a la sombra de su ruca
lo pueden ver lloriquear,
totoral de cinco siglos
nunca se habrá de secar.
Levántate, Callupán.
Violeta Parra
4. Violeta resiste nos subúrbios de Santiago
Eduardo Galeano recolheu testemunhos de resistência encarnados nos recônditos mais populares do continente. Em sua trilogia Memoria del fuego encontramos registro do encanto póstumo de Violeta na periferia de Santiago, em 1984:
Población Violeta Parra
El nombre robado
La dictadura del General Pinochet cambió los nombres de veinte poblaciones del pobrerío, casas de lata y cartón, en las afueras de Santiago de Chile.
En el rebautizo, la población Violeta Parra recibió el nombre de algún militar heroico. Pero sus habitantes se niegan a llevar ese nombre no elegido. Ellos se llaman Violeta Parra, o nada.
Hace tiempo, en unánime asamblea, habían decidido llamarse como aquella campesina cantora, de voz gastadita, que en sus peleonas canciones supo celebrar los misterios de Chile.
Violeta era pecante y picante, amiga del guitarreo y del converse y del enamore, y por bailar y payasear se le quemaban las empanadas. Gracias a la vida, que me ha dado tanto, cantó en su última canción; y un revolcón de amor la arrojó a la muerte.
Eduardo Galeano (1986: 247).
5. Violeta, chilena e universal, nos dias de hoje
Por fim, o chamamento emocionado de Michelle Bachelet para as celebrações do natalício de Violeta, a correr no Chile, em outubro de 2017. Ele expressa toda a universalidade, a vivacidade e a atualidade da vida e da voz da Mestre Violeta:
Violeta Parra está grabada en la memoria de un país que reconoce en su obra un universo donde conviven con la misma fuerza el lamento mapuche y el silencio del desierto de Atacama, la rabia frente a la injusticia y la gratitud de existir, la soledad más profunda y la plenitud del amor. Su melancolía existe en medio de un imaginario fértil, lleno de identidad pero sin fronteras. A través de ella hablan la cordillera y los ríos, y habla también un pueblo entero. Su voz, tan propia, tan suya e inconfundible, fue al mismo tiempo un canto que nos interpretó a todos. Por eso hemos elegido hacer de los cien años de su nacimiento una celebración nacional. Porque queremos conmemorar la creación y la vida de esta mujer brillante, chilena y universal, genio de la palabra, la música y las artes visuales. […]. Como dijo alguna vez su hermano Nicanor, “este país debería llamarse Violeta”.
Michelle Bachelet - Presidenta de la República de Chile7
Notas
1 - Cris Fernández Andrada: Uruguaia residente no Brasil, pesquisadora do trabalho e da resistência. andrada@usp.br
2 - Entrevista realizada por Madeleine Brumagne, em Genebra, em 1965. Disponível em https://violetaendecimas.wordpress.com/entrevista-a-voleta-parra/.
3 - Assim intitula-se a exposição permanente do acervo do Museu que leva seu nome: http://www.fundacionvioletaparra.org/.
4 - Prólogo de Décimas (Parra, 2006).
5 - Prólogo de Décimas (Parra, 2006).
6 - Taita – nome popular para pai, utilizado por crianças do meio rural do Chile e outros países andinos.
7 - Consejo Nacional de la Cultura y las Artes, Gobierno de Chile (2016). http://www.violetaparra100.cl/bienvenida/
Referências Bibliográficas
- Farias, Maria de Lourdes (2007). Violeta Parra: identidade cultural latino-americana moderna. Dissertação (Mestrado em Educação). Criciúma, Universidade do Extremo Sul Catarinense.
- Galeano, Eduardo (1986) Memoria del fuego III: el siglo del viento. Madrid: Siglo Veintiuno Editores.
- Hormazábal González, Viviana (2013). La obra visual de Violeta Parra: un acercamiento a sus innovaciones conceptuales y visuales a través del análisis iconográfico de arpilleras y óleos. Teoría e Historia del Arte (Tese). Santiago: Universidad de Chile.
- Parra, Violeta (2006) Décimas: autobiografía en verso. Santiago de Chile: Editorial Sudamericana.
- Parra, Isabel (2007) El viaje de las obras, in Violeta Parra: Obra Visual. Santiago de Chile: Fundación Violeta Parra.
Como citar
Andrada, Cris Fernández (2019), "Violeta Parra ", Mestras e Mestres do Mundo: Coragem e Sabedoria. Consultado a 14.10.24, em https://epistemologiasdosul.ces.uc.pt/mestrxs/?id=27696&pag=23918&id_lingua=2&entry=36426. ISBN: 978-989-8847-08-9