Cesária Évora
Petit Pays
Costuma-se dizer que Cabo Verde1 é um país fora do mapa. Isto porque, não raro, em terras estrangeiras, as gentes das ilhas se sentem embaraçadas quando apalpam com os dedos um mapa em busca dos dez grãozinhos de areia ao largo do atlântico e nada encontram. Para dissipar por completo o embaraço, tiram da cartola uma resposta mágica: ‘Eu Sou do País da Cesária Évora’. Logo, num instante, abrem-se os sorrisos e os abraços triplicam com a ternura das amizades antigas. Umas/uns cantam, outras/os dançam e por vezes há quem ainda se desfaz do sapato para ilustrar a simpatia e admiração pela diva dos pés descalços ou, como dizem os franceses, la diva aux pieds nus. E começam as estórias sobre o concerto da rainha da morna, desta intérprete que é considerada a expoente máxima da música de Cabo Verde. Cesária Évora nasceu neste pequeno país, retratado em Petit Pays, o país de morabeza e Sodade, que marcou a sua trajectória de vida e a sua carreia musical.
Foto 1 : Cesária Évora, Radio Mindelo, 2008.
Petit pays
Autor: Nando da Cruz
Intérprete: Césaria Evora
La na céu bo é um estrela
Ki ca ta brilha
Li na mar bo é um areia
Ki cata moja
Espaiod nesse monde fora
So rotcha e mar
Terra pobre chei di amor
Tem morna tem coladera
Terra sabe chei di amor
Tem batuco tem funana
Oi tonte sodade
Sodade sodade
Oi tonte sodade
Sodade sem fim
Là haut dans le ciel tu es une étoile
Qui ne brille pas
Ici dans la mer tu es du sable
Qui ne mouille pas
Eparpillée de par le monde
Roche et mer
Terre pauvre remplie d'amour
Avec la morna et la coladera
Terre douce pleine d'amour
Avec le batuque et le funana
Tant de nostalgie
Sodade Sodade
Nostalgie sans fin
(in http://tabanka.no/lyrics.htm)
Sodade
Music and lyrics: Armando Zeferino Soares
Intérprete: Césaria Evora
Quem mostra’b
Ess caminho longe?
Quem mostra’b
Ess caminho longe?
Ess caminho
Pa São Tomé
Sodade sodade sodade
Dess nha terra d’São Nicolau (origin claimed to be “Dess nha terra Praia Branca”)
Si bo t’screve’m
M’ta screve’b
Si bo t’squece’m
M’ta squece’b
Até dia
Ke bo volta
Sodade sodade sodade
Dess nha terra d’São Nicolau
Qui t’a montré
Ce long chemin
Qui t’a montré
Ce long chemin
Ce chemin pour São Tomé (1)?
Sodade Sodade Sodade (2)
De ma terre de São Nicolau (3)
Si tu m’écris
Je t’écrirai
Si tu m’oublies
Je t’oublierai
Jusqu’au jour
De ton retour
Sodade Sodade Sodade
De ma terre de São Nicolau
in http://tabanka.no/lyrics.htm
Para ela todas as homenagens. É a única mulher no país a quem deram o nome a um aeroporto (internacional). Consagrada em monumentos e sítios, selos e cartões postais, gravuras e museus, prémios e distinções, condecorações e honras de Estado. E cujo o próprio nome se confunde com um arquipélago, de dez ‘Ilhas perdidas, / no meio do mar, / esquecidas / num canto do mundo / – que as ondas embalam, / maltratam, /abraçam... ‘ (Jorge Barbosa, 2002). Em Cabo Verde e a Música: Dicionário de Personagens, Gláucia Nogueira (2016: 119) garante que, sendo a primeira pessoa de origem cabo-verdiana a tornar-se celebridade mundial, ‘Cesária Évora põe Cabo Verde no mapa, na virada do século XXI’.
Foto 2: Cesária Évora, Radio Mindelo, 2008.
Mon Pays est une Musique
Por orgulho da música que se produz nas ilhas e na vasta diáspora cabo-verdiana, o poeta Mário Fonseca deslocou o centro de atenção da literatura para a música: Mon Pays est une Musique. Mais recentemente, uma edição especial da revista Nós Genti [Nossa Gente], dedicada à cantora, avançou que ‘a voz de Cesária tornou a música de Cabo Verde numa referência mundial, fruto da harmonia melódica que transporta e do sentimento que transmite’. As gravações mais antigas que constam na sua discografia remontam à extinta Rádio Barlavento, uma compilação editada em 2008, com o título Rádio Mindelo, para a satisfação do público (Cesária Évora, 2008). Revelam uma artista singular no panorama musical destas ilhas atlântica, situadas na costa ocidental africana.
Apocalipse
Autor: Manuel d’Novas
Interprétes: Césaria Evora & Dudu Araùjo
Paké tonte maldade nesse mundo
S'nô ta li sô pa un sigundo
Paké tonte inamizadi
Pa gerá infelicidadi
Paké tonte ingustia d'guerra
S'nô podê cria paz na terra
M'djor é pensa
Home ta chei di malvadeza
Sem respeito pa natureza
O Deus valem
Tonte inventa planeta
Tonte cuitod ba maneta
Sem ses hora tchega
Monopol de um noticambada
E distino di nôs vida
Cada hora um noticia
Cada minuto um malicia
Desarmamente é conversa
Ma banquete e vice versa
É fortuna num ponta
É miseria not ponta
Mundo ta pior cum jogo d'boca
Ca bô mandame cala boca
M'ta d'zé verdade
No tita vivê d'boxe d'amiaça
Num flagelo pa tud raça
Mundo podia ser ot cosa
Vida podia ser cor d'rosa
Si nôs tud podia junta mon
Cu Deus e amor na coraçon
Ma biblia ta la na apocalipse
Pourquoi autant de méchanceté dans ce monde
Si nous sommes ici seulement pour une seconde
Pourquoi autant d’inimitié, qui ne crée que du malheur
Pour quoi autant d’angoisse de guerre
Si nous pouvons créer la paix sur la terre
Mieux vaut réfléchir
L’homme est plein de méchanceté,
Sans respect pour la nature,
Oh Dieu m’écoute
Certains refont le monde
D’autres perdent la tête
Sans que ne soit venue l’heure
Monopole d’une noctambule
Et destinée de nos vies
A toute heure une nouvelle
A chaque minute une malice
Le désarmement est un blabla
de banquet et vice-versa
C’est la fortune d’un côté
Et la misère de l’autre
Le monde est pire qu’un jeu de mots
Ne me dis pas de me taire
Je dis la vérité
Nous vivons sous la menace
D’un fléau pour toute la race
Le monde pourrait être toute autre chose
La vie pourrait être rose
Si nous pouvions tous nous donner la main
Avec Dieu et l’amour au cœur
Mais la Bible nous parle de l’Apocalypse
in http://tabanka.no/lyrics.htm
Em jeito de síntese do perfil artístico e do sucesso de Cesária Évora nos palcos do mundo, Gláucia Nogueira enaltece que:
Numa época em que os fenómenos mediáticos da industria discográfica quase dependem mais da imagem do que da música, a cantora mindelense, longe de encarnar os padrões estéticos vigentes, responde entrevistas com monossílabos, aparece em palco quase monolítica, alheia a noções de expressão corporal e sem grande empenho em comunicar com o público. Mas o facto é que convence. Pela sua voz, bela, sem dúvida, mas também por um carisma difícil de definir ou situar, talvez pela espontaneidade do seu canto meio distraído, sem ênfases ou grandes voos.
A autora do dicionário de personagens da música cabo-verdiana, quando fala desta cantora, refere a uma espécie de ‘lenda de Cinderela’. Talvez seja.
Das ruas do Mindelo aos palcos do Mundo
Foto 3: Cesária, Voz d’Amor, 2003
Não sou nenhuma rainha da música de Cabo Verde. Sou uma das cantoras de Cabo Verde. Mais nada.
.Da primeira vez não fui. Ela queria que eu fosse apenas com o meu pianista. Da segunda fui porque pude levar comigo todos os meus músicos. (sobre a actuação no aniversário da Madonna).
Graças ao Djô da Silva, em 1987, fiz a primeira actuação em França, despertei a atenção da comunicação social e aqui estou hoje com o meu «Grammy» e os meus discos de ouro.
Cesária Joana Évora nasceu no dia 27 de Agosto de 1941, em Mindelo, na ilha de São Vicente. Sabe-se, de acordo com alguns registos escritos, que ela tinha sangue de artistas pois o seu pai tocava instrumentos de corda (cavaquinho, violão e violino) e, curiosamente, era primo do compositor B.Léza, que ela conhecera quando era ainda criança. E o seu irmão Lela era saxofonista, com quem ela fazia a dupla de animadores juvenis nas ruas do Mindelo. Cedo começou a cantar, tendo contudo percalços devido a tragédias familiares. Aos 7 anos, morria-lhe o pai, tendo sido levada pela mãe para um orfanato, onde passou uma breve temporada ao cuidado de religiosas. Passou os anos subsequentes ao cuidado da avó, que a educava nos rigores do catolicismo local. Consta que, com cerca de 13 anos, já teria entrado na vida adulta, cantarolando em bares da cidade do Mindelo, que eram então frequentados por marinheiros visitantes e boémios locais. Entretanto, segundo a própria, teria começado a cantar aos 17 anos (Gonçalves, 2006; Rádio Mindelo, 2008; Nós Genti, 2012; Nogueira, 2016).
Cesária Évora despontou-se na cena musical nos anos sessenta, ainda no tempo da Rádio Barlavento, onde deixou registo da sua passagem e as gravações que, à época, eram realizadas com a ajuda de um único microfone. Valiosas gravações, que hoje são conhecidas do grande público. Ela já se destacava como uma extraordinária intérprete das Coladeiras, estilo musical em voga na altura, tendo como exímios compositores Ti Goy (Gregório Gonçalves) e Frank Cavaquim (José Vicente Gomes). B.Leza havia falecido (1958), mas deixara boas lembranças e continuava a ser recordado e aclamado. Quando Cesária foi fazer umas gravações, que tudo indica terem sido as primeiras da sua carreira e que seriam recuperadas para a sua definitiva consagração, ela andava na casa dos vinte. Vinte e poucos anos de idade. Eram na sua maioria composições do Ti Goy, tendo recebido 25$00 (o equivalente a €0,50) por cada gravação. Chegou a gravar também na Rádio Clube, mas sem nenhuma retribuição financeira.
Tratando-se de uma época em que vigorava uma divisão social muito nítida, a espécie de ‘apartheid social em vigor proibia os pés-descalços, como ela, de subir ao pavimento da principal praça do Mindelo, reservada ao passeio das famílias abastadas’ (Nogueira, 2016: 119). Ainda assim, a sua voz fazia-se ouvir em sítios reservados como o Grémio Recreativo2, frequentado pela alta sociedade mindelense, local onde quiseram obriga-la a cantar com um par de sapatos novos nos pés, mas, a seu jeito, ela tratou de escondê-los ao lado de uma árvore quando foi a sua vez de subir ao palco e, deste modo, cantou descalça, o que foi uma marca digna de registo, desde o início da sua carreira: ‘Eu entrei e atravessei o corredor de entrada do Grémio calçada. na hora da saída, no final do espectáculo, eu não calcei o sapato e saí do Grémio descalça e levei os sapatos numa bolsa’. À voz baixa, conta-se que foi esse tempo que se lhe cunhou a alcunha pelo qual ficou conhecida, a diva dos pés descalços. Nesses tempos áureos, chegou a gravar o seu primeiro disco, em várias sessões de gravação, entre 1962 e 1964. Das gravações dessa fase, algumas também fizeram parte de edições colectivas na diáspora na Holanda. ‘De meados dos anos 60 a meados dos anos 80, Cesária Évora esteve longe da popularização que os circuitos da edição discográfica alcançam’, tendo passado doze anos sem cantar ao público, por desilusão, e enfrentado grandes problemas de alcoolismo (Rádio Mindelo, 2008; Gonçalves, 2006).
Em meados dos anos oitenta, com a elevação paulatina da morna e da coladeira, a voz de Cesária voltou à ribalta, inicialmente através dos festivais femininos da Organização das Mulheres de Cabo Verde (OMCV), por ocasião do décimo aniversário da independência nacional, que incentivaria um grupo de quatro mulheres cantoras a gravarem um LP Mar Azul Abri’m Camim: Cantá Mudjer’s (1986), entre as quais consta a Cesária. Teria posto fim à relação com a OMCV, devido a desentendimentos em relação à forma de pagamento, tendo as mulheres da organização optado por pagamento em espécie como forma de protecção da cantora e ateando a fúria da artista. Encontraria apoio do seu amigo e músico Bana, residente em Lisboa, que a convida para gravar um disco em 1987. E então, em Lisboa, apareceu o empresário Djô da Silva na sua vida artística, quando esta cantava durante um almoço, num restaurante sob a gerência do Bana. Dali em diante, tudo mudaria. Digressões pela vasta diáspora cabo-verdiana e contactos com o mundo inteiro, tendo contado com a imprescindível colaboração do público francês. Aí se construiu a imagem realística da Cise: ‘crioula cinquentona numa casa caindo aos pedaços, como tantas outras, mas dona de uma voz rara, naquele ambiente de cavaquinhos e violões que carregam velhos tempos, ali à porta da belíssima baía’ do Mindelo (Nogueira, 2016: 122). Nos anos noventa, já com o movimento do World Music, Cesária apanhou finalmente o comboio do sucesso e desenvolveu uma ‘carreira fulgurante, conseguindo alcançar a mundialização, que até hoje nenhum outro artista cabo-verdiano conseguiu. Uma vingança do destino e uma vitória da música de Cabo Verde!’ Gravou mais de duas centenas de discos, com inúmeras colaborações nacionais e internacionais, próprias do estrelato que ela alcançou (Rádio Mindelo, 2008; Nogueira, 2016).
Andou na escola, mas apenas foi até à 2ª Classe da Instrução Primária. ‘Aos 18 anos, teve o seu primeiro filho. O pai, um português que partiu. Cesária assumiu sozinha a maternidade. Teve quatro partos, mas só sobreviveram o filho do português e uma filha de um cabo-verdiano, que também partiu’ (Gonçalves, 2006: 158-159). Diz-se que, na vida adulta, viveu sempre na casa da sua mãe: ‘Não vivo com homem em casa, porque quero viver a minha vida’ (Entrevista apud Gonçalves, 2006: 158-159).
Ela morreu a 17 de Dezembro de 2011, na sua terra natal, Mindelo. Em 2013, dois anos após o falecimento da diva, em jeito de homenagem, foi fundado a Cesária Évora Orchestra por um grupo de artistas: Nancy Vieira, Jenifer Solidade, Totinho, etc. (Nogueira, 2016: 124). E no país e noutras paragens, principalmente no campo musical, diversos artistas têm celebrado e recordado a vida e a obra de Cesária Évora. Esta é uma história de vida de Petit Pays.
Fotos 4-6: Casa-Museu Cesária Évora (autora).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- BARBOSA, Jorge (2002), Obra Poética. Lisboa: INCM.
- FONSECA, Mário (1986), Mon Pays est une Musique. Nouakchott.
- LIMA, Augusto Mesquitela (1992), A Poética de Sérgio Frusoni: Uma Leitura Antropológica. Lisboa e Praia: ICLP e ICLD.
- GONÇALVES, Carlos Filipe (2006), Kab Verde Band. Praia: IAHN.
- NOGUEIRA, Gláucia (2016), Cabo Verde e a Música: Dicionário de Personagens. Lisboa: Campo de
NOTAS
- 1 - Cabo Verde é um território arquipelágico, com uma área total de terras emersas de apenas 4033,37 km², que dispõe de um espaço marítimo exclusivo superior a 600 000 km². Situa-se ao largo da zona tropical do atlântico norte, a cerca de 450 km da costa ocidental africana, perto do promontório senegalês que lhe deu o nome. Este arquipélago da extremidade ocidental da faixa do Sahel é composto por dez ilhas de origem vulcânica (nove habitadas) e alguns ilhéus. As ilhas e os ilhéus agrupam-se em dois grupos: Barlavento, composto pelas ilhas de Santo Antão (779 km²), São Vicente (227 km²), Santa Luzia (35 km²), São Nicolau (343 km²), Sal (216 km²) e Boavista (620 km²) e os ilhéus Branco (3 km²) e Raso (7 km²); e Sotavento, composto pelas ilhas de Maio (269 km²), Santiago (991 km²), Fogo (476 km²) e Brava (64 km²) e os ilhéus Grande (2 km²), Luís Carneiro (0,22 km²) e Cima (1,15 km²). Santiago é a maior de todas as ilhas, albergando mais de metade da população residente no território nacional; e Santa Luzia é a menor, sendo a única desabitada.
- 2 - De acordo com Mesquitela Lima (1992), em Mindelo, havia uma sociedade dividida em três classes, sendo que, não obstante o contacto possível, cada uma ocupava o seu lugar na sociedade local.
Como citar
Monteiro, Eurídice (2019), "Cesária Évora", Mestras e Mestres do Mundo: Coragem e Sabedoria. Consultado a 14.10.24, em https://epistemologiasdosul.ces.uc.pt/mestrxs/?id=27696&pag=23918&id_lingua=2&entry=35263. ISBN: 978-989-8847-08-9