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Paulo Freire

Gabriel Humberto Muñoz Palafox
Publicado em 2020-06-15

Um “Mestre do mundo” na esfera da educação popular

 

Introdução

 

A primeira vez que ouvi falar o nome de Paulo Freire, foi durante uma greve deflagrada pelos estudantes da Escola Superior de Educação Física da Cidade do México, no ano de 1978, em mais um desses momentos de crise que, periodicamente, ocorrem na América Latina, resultantes da pobreza, instabilidade e do subdesenvolvimento econômico e social. As ideias deste educador apareceram, naquela época, nas vozes de lideranças estudantis e dos movimentos sindicais, quando estas defendiam a importância de aprendermos a promover uma educação crítica e conscientizadora, oposta às práticas tecnicistas de ensino, estéreis e burocráticas, legitimadoras da vontade e dos interesses das classes dominantes. Um tipo de educação que, longe de ser “neutra” quanto às suas intenções, devia ser compreendida como um “ato político” libertador de todo tipo de opressão e dominação. Nesse contexto, tive a oportunidade de ler que quando o ser humano se torna capaz de compreender, sentir e conhecer seu “mundo particular”, através de uma experiência prática de transformação coletiva do mesmo, seu pensamento e expressão podem ganhar um significado mais além daquele mundo que o dominava (Freire, 1975). Mensagem, esta, que utilizei para interpretar que a vitória alcançada nesse significativo movimento de greve, além de ter sido resultado de uma dessas “experiências práticas de transformação coletiva” do nosso “mundo particular”, tinha contribuído, também, para dar “um novo significado” à educação, tanto para mim quanto para muitos dos e das minhas colegas. 

 

Depois exercer o cargo de professor e de participar nos movimentos populares em defesa da educação pública mexicana, em 1985 viajei ao Brasil para um ano depois, ingressar no Mestrado em Educação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde tive a oportunidade de tornar-me mais um dos “educandos” de Paulo Freire. Além de ter conseguido estudar com ele, parte da sua extensa obra, sinto aqui a necessidade de testemunhar que, coerentemente com tudo aquilo que fez e escreveu sobre o ato de ensinar e a Educação, Freire sempre nos alertou sobre a necessidade de evitar ao máximo a mistificação de sua obra. Aspecto este que deveria implicar, em todo momento, estudá-la, analisá-la e colocá-la em prática, munidos do espírito crítico necessário para evitar que esta fosse utilizada dogmaticamente. Isto, por compreender, dentre outros aspectos, que ela era, como práxis, além de inacabada, possível de ser superada no próprio movimento da história. Tomando como base a minha vivência no campo da educação, assim como também considerando que a obra do educador Paulo Freire deve ser sempre analisada de forma crítica e construtiva, é que procurarei responder aqui, porque Paulo Freire pode ser considerado um Mestre do Mundo.

 

Paulo Freire, um Mestre do Mundo?

 

Reglus Neves Freire, melhor conhecido como Paulo Freire, nasceu no dia 19 de setembro de 1921 na cidade de Recife, no Estado de Pernambuco, Brasil, e faleceu na cidade de São Paulo desse mesmo país no dia 2 de maio de 1997. Apesar de ter nascido em uma família que atravessou sérias dificuldades econômicas durante os anos 1930, Paulo Freire contou com o apoio dos seus pais, irmãos e outras pessoas solidárias para poder estudar e terminar o curso de Direito no ano de 1947. Não obstante, diante da necessidade de contribuir com a sobrevivência de sua família, Freire foi obrigado conciliar os estudos com o trabalho, surgindo daí a possibilidade de ministrar aulas de gramática portuguesa. Ele mesmo conta que, em algum momento de sua vida, entre os 15 e 23 anos de idade, depois apreender a gostar dessa prática de ensino e enveredar nos estudos da linguagem, terminou se apaixonando por esse trabalho, surgindo daí o sonho de se tornar professor, mesmo antes de concluir o curso de Direito (Freire, 1985).

 

Além de atuar nos campos da alfabetização de pessoas adultas e da docência universitária na cidade de Recife, Paulo Freire se engajou na luta política como ativista dentro da qual se tornou um dos fundadores do Movimento de Cultura Popular (MCP) que, em resumo, tinha como objetivo promover e ampliar a formação e participação das camadas populares nas lutas pela superação da opressão, da pobreza e a construção de uma sociedade igualitária. No período compreendido entre 1950 e 1960, época em que o Brasil chegava aos 72 milhões de habitantes em uma conjuntura de extrema desigualdade econômica, social e cultural caracterizada por altíssimos níveis de pobreza e uma população com aproximadamente 30 milhões de pessoas analfabetas, Paulo Freire soube compreender, descrever e analisar criticamente essa realidade, utilizando-se de uma linguagem própria, no meu entendimento, resultante de um interessante e criativo processo de articulação dialética entre as linguagens oriundas das várias culturas populares e aquelas provenientes da Filosofia e da Pedagogia, porém, sem cair, em momento algum, no formalismo e no tecnicismo, característicos da lógica formal e do discurso científico positivista.

 

Como resultado da sua experiência profissional e militante, Freire percebeu e identificou a existência de uma formação cultural caracterizada, dentre outros aspectos, pelo contínuo “silenciamento” das palavras e das vozes das camadas populares. Um tipo de “Cultura do Silêncio” difundida por uma forma de organização social “fechada”, “elitista” e “hierarquizada”, governada por interesses de grupos, classes e países dominantes e opressores. Pensando como contribuir para a superação dessa forma de organização social e sua respectiva cultura dominante - que poderia ser caracterizada nos dias de hoje como colonialista, heteropatriarcal (homofóbica e machista) e racista -, Paulo Freire dedicou-se a construir um projeto coletivo de educação orientado pela e para a “prática da liberdade”. Esse projeto deveria contar com uma pedagogia capaz de oferecer a cada pessoa alfabetizanda, a possibilidade de apreender o mundo, não a partir da aprendizagem mecânica e utilitária da escrita, da leitura e da aritmética, mas por meio de uma educação promotora da formação de consciências críticas, propositivas e transformadoras de toda a forma de opressão, exclusão, discriminação e preconceito, não somente de natureza econômica, mas, também, de gênero, raça/etnia e idade.

 

Afrontando os interesses e o desejo de estabilidade das elites por meio da manutenção do status quo dominante, a pedagogia proposta por Paulo Freire para alfabetizar pessoas jovens e adultas, apresentaria como pressupostos básicos, primeiro, a ideia de que, os seres humanos e a sociedade são “inacabados” ou “inconclusos”, motivo pelo qual se encontram em permanente e dinâmica construção, e, em segundo lugar, que nós, seres humanos, não estamos no mundo como “objetos a mais”, mas nos integramos nele refletindo e intervindo com vistas a sua transformação. Além disso, esta pedagogia deveria se comprometer com o estabelecimento de uma forte relação entre as pessoas educadoras e educandas, por meio da utilização de dinâmicas de aprendizagens orientadas pelo diálogo e a leitura crítica da realidade, destinadas a promover, dentre outros objetivos, que os educandos e as educandas pudessem se identificar enquanto “sujeitos no mundo e com o mundo”, como seres “abertos” capazes de realizar “a complexa operação de, simultaneamente, transformar o mundo através de sua ação, de captar a realidade e expressá-la por meio de sua linguagem criadora” (Freire, 1981, p. 53).

 

Da pedagogia resultante das experiências de alfabetização vivenciadas por Freire e suas equipes de trabalho na periferia de Recife, Pernambuco e em outros municípios de baixa renda socioeconômica e cultural do Brasil, surgiu e foi dado a conhecer o denominado “Método Paulo Freire”. Este método foi aplicado, por exemplo, na cidade de Angicos, Rio Grande do Norte, onde 300 cortadores e cortadoras de cana-de açúcar apreenderam a ler e escrever em apenas 45 dias sem a utilização das tradicionais “Cartilhas de Alfabetização”, as quais vinham sendo criticadas por estarem baseadas no uso de técnicas de ensino repetitivas e memorizantes, assim como também pelo conteúdo abstrato, “desconectado” da realidade concreta dos educandos e das educandas. A importância dessas experiências é tratada no capítulo “Educação e Conscientização” do livro Educação como prática da Liberdade, escrito por Freire e publicado em 1967. Depois de apresentar dados sobre a terrível situação educacional que o país atravessava nos anos 1960, o autor defende uma política de “democratização da cultura”, proposta que as elites abominavam, defendendo que se esta proliferasse provocaria uma forma de “vulgarização” da cultura, “nociva” aos “interesses” da sociedade.

 

Contrário a esse discurso ideológico, Freire relata nesse livro, que as experiências de alfabetização realizadas até o começo dos anos 1960 em cidades como Angicos, estavam contribuindo para efetivar esta política de democratização da cultura, à medida que, superando a visão utilitarista da educação, o método desenvolvido estava ensinando o povo a ler, escrever e fazer contas, compreendendo a realidade para além das aparências mistificadoras, alienantes e paralisantes que somente contribuem para reproduzir a concepção e prática dominante de mundo (Freire, 1967). Além disso, o desenvolvimento de dinâmicas coletivas de estudo, tais como o “Centro de Cultura” e o “Círculo de Cultura”, permitiu a Freire amadurecer e tornar realidade um conjunto de “convicções” surgidas na juventude, depois de ele ter iniciado as suas “relações pedagógicas” junto às pessoas “proletárias e subproletárias”, a de que seria possível, dentre outras:

 

superar a escola formal/tradicional como lugar e conceito “demasiado carregado de passividade”;

 

construir uma escola onde, em lugar de uma prática docente recheada de tradições fortemente “doadoras”, haveria uma pessoa educadora, “coordenadora de debates” capaz de substituir as “aulas discursivas” pela “práxis do diálogo”;

 

criar uma escola transformadora da pessoa educanda com “tradições passivas” e submissas, em uma efetiva “participante de grupo”;

 

superar os “pontos” e “programas de ensino alienados” por programações de ensino “compactas”, “reduzidas” e “codificadas” em “unidades de aprendizado” (Freire, 1967).

 

Claramente comprometido com a construção de uma Pedagogia libertadora, superadora da proposta de “educação bancária” ofertada pelas elites às camadas populares do país, Paulo Freire aceitou em 1963 o convite do então presidente da República, João Goulart, para coordenar uma campanha nacional de alfabetização por meio da criação de uma Comissão de Cultura Popular (CCP). Esta comissão estaria encarregada de disseminar pelo país o trabalho desenvolvido pelo MCP em Pernambuco, o qual além de já ter sido testado em cidades como Angicos, Mossoró e João Pessoa, também vinha sendo utilizado nas capitais do Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília por intermédio do Centro Popular de Cultura (CPC) fundado pela União Nacional dos Estudantes (UNE). A campanha previa que, entre junho de 1963 e março de 1964, seriam alfabetizadas, no mínimo, 2 milhões de pessoas por meio da criação de 20 mil Círculos de Cultura.  Convivendo com um contexto social fortemente conturbado por problemas econômicos e instabilidade política, a equipe de Paulo Freire conseguiu capacitar milhares de pessoas educadoras contando com o apoio de vários movimentos populares, assim como também preparar os materiais de ensino que seriam utilizados no processo de alfabetização.

 

Entretanto, antes de serem instituídos os Círculos de Culturas no país, a elite dominante efetivou junto com as lideranças das forças armadas, um golpe de Estado a partir do mês de abril de 1964 o qual resultou na apreensão dos materiais impressos e na paralização de todas as atividades do governo, além de obrigar o presidente deposto a se exilar fora do país. Contando na época com 43 anos de idade, Paulo Freire foi submetido a inquéritos, tanto pela universidade quanto pelos militares, ficando detido durante 70 dias, e sendo depois obrigado a solicitar asilo político junto à embaixada da Bolívia para que ele, sua esposa Elza e seus 5 filhos pudessem viajar ao exterior onde ficaram na condição de exilados entre 1964 e 1980, quando o regime de abertura democrática possibilitou a sua volta ao país.

 

Durante o exílio, Freire viajou a Genebra onde assumiu um cargo educacional no Conselho Mundial das Igrejas (CMI) e fundou, junto com outras pessoas brasileiras exiladas, o Instituto de Ação Cultural (IDAC) para orientar e assessorar os países do então chamado “Terceiro Mundo” no campo da Educação Popular. Em 1975 recebeu o convite do governo da Guiné-Bissau para assessorar e colocar em prática um Programa Nacional de Alfabetização, além de atuar em países recém independizados do colonialismo português tais como Angola, Cabo Verde, e as ilhas de São Tomé e Príncipe. Também continuou a difundir a sua obra em outras nações como Austrália, Estados Unidos, Ilhas Fiji, Índia, Itália, Nicarágua, Suíça e a Tanzânia, além de escrever vários livros, tornando-se o mais conhecido deles, a Pedagogia do Oprimido (publicado em Portugal no ano de 1972, e no Brasil, em 1974). Depois do exílio, Freire continuou a atuar no Brasil, no campo da Educação Popular, e ministrar aulas em cursos de pós-graduação, além de ter sido Secretário de Educação do Município de São Paulo (janeiro de 1989 a maio de 1991), época em que a sua obra já era mundialmente conhecida.

 

Além de Paulo Freire ter produzido um expressivo número de textos e artigos, 25 livros e participado de inúmeros eventos como seminários e conferências ao longo de mais de 50 anos de carreira, no meio dos anos 1990 já tinham sido catalogadas mais de 6000 publicações que faziam referência direta ao seu trabalho. Em reconhecimento ao conjunto da sua vida e obra, Freire tornou-se o cidadão brasileiro com mais homenagens nacionais e internacionais recebidas na história do país. Além de obter em 1986 o prêmio da UNESCO de “Educação para a Paz” e seu nome ficar estampado em inúmeras escolas, bibliotecas, monumentos e outros locais públicos do país e do mundo, o educador recebeu 30 títulos Honoris Causa em vida, e mais 5 depois de falecido, sendo o primeiro outorgado em 23 de junho de 1973 pela Open University do Reino Unido, o último, em 2011, In Memorian, pela Universidade de Brasília. Em 2009, durante a realização do Fórum Mundial de Educação Profissional ocorrido na cidade de Brasília, o Estado brasileiro fez um pedido de perdão post mortem à viúva e à família de Paulo Freire, além de garantir a “reparação econômica” das perdas provocadas durante o período da ditadura militar, e posteriormente, em 13 de abril de 2012, foi sancionada a Lei nº 12.612, que declarou o educador Paulo Freire, “Patrono da Educação Brasileira”.

 

Finalmente, vale ressaltar aqui um fato já conhecido em relação à obra de Paulo Freire. Cada vez que o sistema do capital se depara com uma crise econômica geradora de mais pobreza, exclusão, discriminação e perda de direitos, o volume de venda dos seus livros aumenta consideravelmente, tal como acontece com as obras de pensadores como Karl Marx, como resultado da necessidade, vontade ou simples curiosidade de conhecer a realidade para transformá-la fora da lógica do sistema do capital e suas práticas fascistas, heteropatriarcais, colonialistas e racistas. Tudo diante do eterno desgosto, sem dúvida, das classes dominantes. Por tudo isso, não é exagero afirmar que o educador brasileiro Paulo Freire deve ser considerado, com toda honra e sem qualquer leitura dogmática da realidade, um Mestre do Mundo da educação comprometida com a construção de sociedades livres da opressão colonialista, heteropatriarcal e racista, e, portanto, com a formação crítica/transformadora das pessoas proletárias e subproletárias (Freire, 1967), dos esfarrapados e das esfarrapadas do mundo (Freire, 1987), dos condenados e das condenadas da Terra (Freire, 1987), de todas as pessoas excluídas de direitos e vida digna (Freire, 1996).

 

Gabriel Humberto Muñoz Palafox é Docente da Universidade Federal de Uberlândia. Mestre e Doutor em Educação: Currículo, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil. Pós-doutor em Ciências Sociais, pela Universidade de Coimbra, Portugal. 

 


Referências

Freire, Paulo. (1967) Educação como prática da liberdade.  Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Freire, Paulo. (1981) Ação Cultural para a liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Freire, Paulo. (1985) Essa escola chamada vida. São Paulo: Editora Ática.
Freire, Paulo. (1987) Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Freire, Paulo. (1996) Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

 

 

 

 

Como citar

Palafox, Gabriel Humberto Muñoz (2019), "Paulo Freire", Mestras e Mestres do Mundo: Coragem e Sabedoria. Consultado a 28.03.24, em https://epistemologiasdosul.ces.uc.pt/mestrxs/?id=27696&pag=23918&id_lingua=2&entry=29932. ISBN: 978-989-8847-08-9