Para o arranque do projeto Lusotropicalismo, no qual nos propomos trabalhar de forma regular durante os próximos dois anos, quisemos falar com uma série de personalidades, cujo conhecimento e voz importa considerar quando pensamos no tema do colonialismo português, de forma a percebermos quais as preocupações que existem em volta deste tema.
Como base para este arranque, centramo-nos no mito do Lusotropicalismo, teoria desenvolvida pelo cientista social brasileiro Gilberto Freyre, na primeira metade do século XX, sobre a relação de Portugal com os trópicos. Neste modelo social, o cientista distingue o processo de colonização de Portugal do dos restantes impérios europeus, por considerá-lo mais empático, próximo e afeiçoado aos indígenas – ideias que vêm tentar retirar a dureza e responsabilização de processos de ocupação de territórios, agressão e tráfico de pessoas escravizadas.
Assim, chegamos às respostas de Amina Bawa, Aurora Almada e Santos, Beatriz Gomes Dias, Francisco Vidal, Joacine Katar Moreira, Leonor Rosas, Mamadou Ba, Maria Paula Meneses, Miguel Cardina, Myriam Taylor, Paula Cardoso, Sofia da Palma Rodrigues, Solange Salvaterra Pinto a três perguntas:
1. Como considera que a população portuguesa encara o passado colonial?
2. Considera que a teoria do Lusotropicalismo ainda persiste na sociedade portuguesa? Se sim, como é que esta visão impacta a maneira como os portugueses olham para o racismo?
3. Deve Portugal trabalhar numa reparação histórica? Se sim, como?
1. Como considera que a população portuguesa encara o passado colonial?
O colonialismo não é passado. A colonização, como sublinha Césaire, são milhões de seres humanos a quem inculcaram sabiamente o medo, o complexo de inferioridade, o tremor, a genuflexão, o desespero, o servilismo. Esta violência, com múltiplos matizes, procurou reduzir o outro a um ser inferior, um ser com potencial para ser humano, se convertido e domesticado, pela educação e pelo trabalho, virtudes civilizadoras eurocêntricas. A colonização, enquanto sistema de negação da dignidade humana, perdura nos dias de hoje, ao se insistir em não reconhecer a diversidade de saberes vividos a sul, para além das referências eurocêntricas.
2. Considera que a teoria do Lusotropicalismo ainda persiste na sociedade portuguesa? Se sim, como é que esta visão impacta a maneira como os portugueses olham para o racismo?
O Lusotropicalismo foi um dos dispositivos desenvolvidos por Portugal para legitimar o colonialismo e que, ao não ser criticamente desmascarado, continua a ser usado para justificar o suposto caráter tolerante e não xenófobo da sociedade portuguesa e a ausência de um racismo estrutural nas suas instituições. Quando os «ventos de mudança» começaram a soprar no continente africano, nos anos 60, Portugal procurou justificar, quer interna, quer externamente, o caráter benigno do «seu» colonialismo, agora apresentado como o «modo português de estar no mundo». Esta autoimagem de Portugal continua a ser ativamente apresentada como uma característica específica da sua identidade: um povo fraterno, de vocação ecuménica, tolerante e não racista.
3. Deve Portugal trabalhar numa reparação histórica? Se sim, como?
As reparações são a resposta direta à violência estrutural gerada pelos longos séculos de violência, opressão e negação da alteridade. Por exemplo, a aceitação acrítica de categorias imperiais de conhecimento é um sintoma de como o nosso conhecimento continua a ser moldado pelas estruturas imperiais. Neste sentido, o reclamar por justiça cognitiva, ou seja, o reclamar de uma agenda que insista que o que é estudado sobre a violência colonial não ocorreu «no passado», e que o direito de as pessoas a verem o seu mundo reparado é justificado, exige uma temporalidade e uma agenda não imperial. (Re)parar o conhecimento deve ser parte constitutiva desta agenda, para transformar as mentalidades e as instituições.