Este número da e-cadernos CES, escrito em plena pandemia da covid-19, abarca realidades de Portugal, do Brasil, de Angola e de Moçambique. Se a pandemia alterou as noções fundamentais de espaço e de tempo, seja em termos de vivências pessoais ou coletivas, tornou possível que dedicássemos tempo à reflexão sobre as políticas laborais e a justiça distributiva.
A longa duração do colonialismo e da globalização capitalista – uma relação íntima, fundacional dos sistemas modernos de exploração – lembra-nos que ainda há muito a fazer, especialmente no campo do trabalho. A pandemia veio revelar como a linha abissal de exclusão radical continua a marcar o mundo: uma forma de pensar que separa radicalmente seres considerados plenamente humanos de seres considerados sub-humanos, desprovidos de saberes e de direitos, como o direito à vacina (Santos, 2020).
Vários têm sido os alertas sobre a importância da vacinação da maioria da população do planeta; todavia, os dados disponíveis mostram que os países mais ricos terão conseguido vacinar os seus cidadãos muito antes dos países com menos recursos. Em protesto face à decisão unilateral de encerramento de fronteiras face à emergência de uma nova estirpe do SARS-CoV-2, uma declaração conjunta – do African Vaccine Acquisition Trust , dos Centros Africanos de Controlo e Prevenção de Doenças (CDCs Africa) e do mecanismo Covax – denuncia que a maioria das doações de doses de vacina contra a covid-19 para África foram feitas de forma ad hoc, com pouca antecedência e com doses de curta duração, o que torna extremamente desafiante o planeamento de campanhas de vacinação e o aumento da absorção de vacinas. O que o capitalismo está a fazer com as vacinas é o que tem feito com a vida humana e a natureza ao longo de séculos: transformá-la em bens transacionáveis, num negócio. Associada às crises ecológicas e ambientais que marcam o nosso tempo, a pandemia da covid-19 é o marcador de uma nova fragilidade estrutural da vida humana no planeta. O negócio das vacinas reafirma sem pejo a linha abissal que separa o Norte do Sul, como destacou recentemente num artigo de opinião o editor de Economia do The Guardian. Esta linha abissal expressa a racionalidade dominante, e constitui-se a partir de um sistema de distinções visíveis e invisíveis, sendo que as segundas fundamentam as primeiras. As distinções invisíveis são estabelecidas através de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos, onde o “outro lado da linha” é apresentado como insignificante, residual enquanto realidade, ou é mesmo produzido como inexistente. Este pensamento abissal, fundacional da modernidade, constrói os sujeitos do Sul como objetos sobre os quais se fala e que não reconhece como plenamente humanos. Em todo o caso, são seres desprovidos de saberes úteis para os centros metropolitanos (Santos, 2007: 3).
Conteúdo Original por e-cadernos CES, 35, 2021