Tenho o gosto de vos apresentar um livro importante e que tem uma história importante para mim. Comecemos pelo fim. Conheci o Cleber Folgado há vários anos em Fortaleza, um jovem de origem camponesa pobre cursando Direito graças aos programas de acesso à universidade que os governos do Presidente Lula tinham criado. Eu tinha feito uma palestra na Universidade Federal e participávamos num colóquio sobre o tema dos agrotóxicos organizado pelo meu amigo Fernando Carneiro, então professor da Universidade de Brasília e cujo estágio de pós-doutoramento no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra tive o gosto de orientar. Fiquei impressionado com o Cleber, com seu entusiasmo militante nas discussões sobre a terra, os camponeses, o agronegócio, os agrotóxicos e a agroecologia. E também com a sua vontade de aprender e, sobretudo com a capacidade para encurtar distâncias entre pessoas. Ouvia-o e não deixava de pensar no conceito de intelectual orgânico de Gramsci. Estava perante um jovem ativista e intelectual saído do movimento camponês ansioso por tirar um curso de direito que lhe desse os instrumentos para defender os direitos da sua gente. Era talvez um intelectual de retaguarda, o tipo de intelectual-ativista que tenho vindo a propor nos meus trabalhos sobre as epistemologias do sul. Pouco tempo depois estávamos a planejar escrever um artigo juntos e se não fizemos até agora a culpa não é certamente do Cleber.
A apresentação que o Cleber faz de si próprio neste livro é eloquente e diz tudo: “Camponês, graduando em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS (Convênio UEFS -INCRA/Pronera. Turma Elizabeth Teixeira). Militante do Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA/CLOC-Via Campesina, e da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida. Membro do Observatório da Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, Floresta e das Águas – OBTEIA, e da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia – AATR. Dedica-se, dentre outros temas, a estudar o sistema normativo de agrotóxicos.”
O livro que vos apresento tem a marca desta apresentação. É um livro sólido sobre um tema importante, mas é também um livro militante que pretende ser objetivo mas não neutro ao tratar um tema com tanto impacto na vida dos camponeses e dos brasileiros em geral. Na sua maioria escrito por jovens profissionais empenhados, competentes e incutidos do espírito de cidadania ativa, de democracia real e de justiça social, este livro merece uma leitura atenta por várias razões.
A primeira razão tem a ver com a concepção de direito que por ele perpassa. Tal como o saudoso Roberto Lyra Filho, tenho vindo a estudar as condições em que o direito pode ser emancipatório, ou seja, posto ao serviço das lutas populares e suas causas. No meu livro mais recentemente publicado Brasil (As Bifurcações da Ordem: a Revolução, Cidade, Campo e Indignação. São Paulo, Cortez Editora 2016) dedico o primeiro capítulo a este tema. Os textos reunidos neste livro mostram que a área dos agrotóxicos é um campo muito difícil para a mobilização emancipatória do direito. Nele convergem interesses muito poderosos na sociedade e na política brasileiras. Os que conhecem o meu trabalho sabem que a condição essencial para o direito poder ser emancipatório é a articulação entre a mobilização política e a mobilização jurídica ou judicial. Como esta é uma área de enorme desigualdade política, o livro tem o interesse de por à prova muitas das teorias que tenho vindo a defender.
A segunda razão do interesse do livro reside no tema em si. É um tema que nos afeta a todos nós, mesmo se os seus efeitos mais imediatos e violentos recaem nos camponeses que, afinal, em condições cada vez mais difíceis continuam a produzir os produtos de que nos alimentamos. Como se diz num dos textos, padrão desenvolvimentista que subjaz ao agronegócio e aos agrotóxicos provoca reflexos devastadores: o avançado processo de erosão genética; a degradação ambiental; o desequilíbrio e deterioração da agrobiodiversidade; o empobrecimento no campo; a concentração da terra; o êxodo rural; a dependência tecnológica e a gradual extinção das técnicas agrícolas tradicionais de cultivo utilizadas pelas populações camponesas, ameaçadas de verem desaparecer os seus preciosos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Esse padrão predatório objetiva transpor a conceção da natureza como entidade regenerativa para um sistema que não possui capacidade intrínseca de autorregeneração e autossustentabilidade.
A terceira razão porque recomendo a leitura deste livro reside no facto de incluir uma perspectiva de análise que raramente se vê representada no tratamento deste tema. Refiro-me à perspectiva feminista. Um dos textos mostra como é fundamental perceber criticamente em que lugar da sociedade se insere o mundo do direito, via de regra branco, androcêntrico, heteronormativo. Para depois salientar que as mulheres têm um papel determinante na luta contra a agricultura industrial devido à sua centralidade nas práticas que se opõem à logica desta agricultura predadora. Em jeito de manifesto que não tenho dúvidas em subscrever, conclui que se os cuidados agroecológicos não são atividades das mulheres por uma assunção natural, mas sim, porque são as mulheres quem as pratica, então que as mulheres sejam visibilizadas como forma de superação de suas opressões de gênero.
Há ainda uma última razão para o interesse em ler este livro. Uma razão particularmente inquietante. O Brasil atravessa atualmente um período político particularmente conturbado em que muitas das conquistas de inclusão social obtidas no período anterior estão a ser postas em causa. É pois um período que se apresenta como sendo um período de ruptura. No entanto, este livro mostra as continuidades que atravessam o período mais recente. Afinal, o neoliberalismo trouxe consigo a tríplice aliança agronegócio-latifúndio-estado, uma aliança que se intensificou nos últimos dez anos. Onde estão as rupturas e onde estão as continuidades?
Por todas estas razões, recomendo vivamente a leitura deste livro.
Boaventura de Sousa Santos