Edward Said
Eu tenho sido incapaz de viver uma vida descomprometida ou em suspenso: eu não tenho hesitado em declarar a minha filiação a uma causa extremamente impopular. (Edward Said)
1- O que faz de Edward Said um mestre do mundo?
É inegável o legado da obra magistral de Edward Said (1935-2003), traduzida, discutida, criticada, traduzida e difundida em mais de 38 países, origem profícua de novas áreas do saber, influência importante na maior parte das Ciências Humanas no século XX. Um dos mais lúcidos intelectuais do nosso tempo, referiu-se em muitos momentos a um poema de Aimé Césaire de que gostava muito e que diz muito sobre a sua vida como um intelectual humanista: há lugar para todos no encontro marcado da vitória. Admirador da literatura, acreditava que todo o texto podia ensinar. Admirador das grandes lutas, criticava a postura academicista de Michel Foucault e admirava o projeto de Frantz Fanon, que além de denunciar a exploração colonial e seus efeitos sobre os corpos e as almas das pessoas, também fez disso um convite à luta.
A sua obra mais conhecida, o Orientalismo (1978), teve um impacto tão profundo nos estudos culturais, principalmente nos países não ocidentais, que foi capaz de articular interesses diversos dentro do projeto intelectual que veio a se denominar Pós-Colonialismo, sendo considerada uma de suas obras fundadoras, junto com Can the subaltern Speak de Gayatri Chakravorty Spivak e The location of Culture de Homi Bhabha.
Suas opiniões também o qualificaram como o principal porta voz da causa palestina nos Estados Unidos. Membro do Conselho Nacional da Palestina, sempre foi contra fundamentalismos e atraiu inimigos de ambos os lados do conflito árabe-israelense. Chamado de professor do terror, ao ser contra os acordos de paz de Oslo por achar que não consideravam as reivindicações palestinas, e chamado de nazista por The Jewish Defense League. Seu escritório na universidade de Columbia foi incendiado e tanto ele quanto a família receberam inúmeras ameaças de morte.
Nascido em Jerusalém em 1935, o palestino Edward Wadie Said experimentou desde criança a ideia de estar fora de lugar. Seu pai era cristão ortodoxo e sua mãe protestante em um país de maioria muçulmana; a família tinha cidadania americana e palestina e viveu, além da Palestina, no Líbano e no Egito. Said imigrou adolescente para os Estados Unidos para terminar seus estudos. O exílio foi para ele uma das características mais marcantes de sua condição como humano e intelectual e tornou-se uma metáfora profícua para seu trabalho: um norte-americano na Palestina, um palestino nos Estados Unidos. Deixa um legado grandioso de mais de 20 livros publicados, da crítica literária, à política no Meio Oriente, passando pela ópera, pelos filmes e pelas viagens.
Professor de Literatura Comparada da Columbia University nos Estados Unidos, fez seu bacharelado na Universidade de Princeton (1957), e mestrado (1960) e Doutorado (1964) na Universidade de Harvard onde se especializou em Literatura Inglesa. Edward Said fez uso de sua posição prestigiosa como intelectual norte-americano para denunciar o sofrimento do povo palestino na guerra árabe-israelense, denunciar a construção estereotipada do povo árabe pelo ocidente e apresentar uma obra sofisticada sobre o papel do intelectual de desmistificar as relações de poder e denunciar a desigualdade.
Há várias referências, tanto de Said em entrevistas quanto de comentadores, sobre o ano de 1967 ser um marco na sua biografia e na sua obra ano em que se inicia a Guerra dos Seis Dias entre forças árabes do Egito, Síria e Palestina contra o avanço das forças israelenses no mundo árabe. Nesse momento engaja-se definitivamente na luta pela autodeterminação do povo palestino refletindo-se em uma mudança radical nos seus interesses de pesquisa.
Em 1968, publica seu primeiro ensaio político The Arab Portrayed em que diz ser preciso assumir o desafio meio absurdo de articular uma história de perda e expropriação que precisa ser desembaraçada, minuto a minuto, palavra por palavra, centímetro por centímetro. Inicia-se então uma longa carreira acadêmica e política centrada nas questões de expropriação, exílio, luta política pelos direitos humanos, a luta para expressar o inexpressável, e um conjunto de questões que a partir daquele momento deram forma ao seu trabalho.
2. O Orientalismo como criação do Ocidente
No período entre 1978 e 1981 Said escreve a sua famosa trilogia sobre as questões do Islão: Orientalismo (1978), A questão da Palestina (1980) e Cobrindo o Islã (1981) e elabora a ideia de mundanidade (do inglês worldliness) que o acompanharia por toda a sua obra.
Ao analisar as obras que falam sobre o Oriente, Said busca demonstrar que mais do que narrativas isoladas, são uma expressão da dominação europeia sobre o mundo árabe. Para falar de relações de poder, Said não precisa recorrer ao aparato da Ciência Política, ele pode fazê-lo pela análise das obras literárias, pois elas exprimem e constroem, ao mesmo tempo, uma realidade de dominação. A este método de análise da obra literária para enxergar as relações de poder com as quais a obra se filia e expressa, Said chama de leitura contrapontual (contrapuntual reading), tomando de empréstimo a ideia de contraponto da Música.
A noção de mundanidade é para ele uma reação ao debate estruturalista/pós-estruturalista no fim da década de 1960. Para Said, o texto não termina no livro, assim como a Literatura não é uma estrutura inerte com fim nela mesma. O ato literário é um ato político, portanto, não pode ser separado de seu contexto cultural e das relações de poder que o levaram a ser produzido.
O exemplo magistral da ideia de mundanidade está no Orientalismo (1978), obra que surge a partir da inquietação do autor:
Como uma designação fabricada na Europa, ‘o Oriente’ por muitos séculos representou uma mentalidade particular, como na expressão ‘the oriental mind’ [grifo nosso] e também um conjunto específico de características culturais, políticas e até raciais. Mas principalmente o Oriente representou um tipo de generalização indiscriminada para a Europa, associado não só à diferença e alteridade, mas a vastos espaços, massas indiferenciadas de pessoas escuras, e romance, locais exóticos e mistério das maravilhas do Leste. (Said, 1992: 3)
A tentativa de responder a essa pergunta levou a uma obra que reuniu os maiores interesses de Said, a literatura e a cultura de um lado e o estudo do poder por outro, elaborando uma contra-história da tradição literária europeia ao demonstrar a pertinência de sua ideia de mundanidade para compreender as relações de saber-poder que se constituem com o poder imperial.
No caso do Orientalismo, ele tanto expressa uma certa forma de compreender o outro oriental, como é também um conjunto de regras que devem ser seguidas, expressas na forma de pressupostos e métodos, para que seja possível conhecer o oriental. Cada nova informação, para ser legitimada, precisa respeitar os cânones precedentes, não havendo espaço para o desmonte das representações que se acumulam sob o nome de orientalismo.
Este discurso [o Orientalismo] é um sistema regulador de produção de conhecimento dentro de certos limites onde certas regras precisam ser observadas. Ir além, não usá-lo é virtualmente impossível porque não existe conhecimento que não seja codificado desta maneira (Said, 2012).
Para compreender o Orientalismo em sua mundanidade, é preciso perceber três características: a) o orientalismo como uma disciplina acadêmica, b) um jeito de pensar e c) uma instituição que determina como se deve lidar com o Oriente. Como uma disciplina acadêmica, o Orientalismo surge no século XVIII e tem como objetivo acumular um edifício de conhecimento que serve para perpetuar e reforçar as representações ocidentais sobre o oriente. Como um jeito de pensar, o Orientalismo está baseado numa distinção epistemológica e ontológica entre o Oriente e o Ocidente. Como instituição, o Orientalismo é uma estrutura usada para dominar e autorizar representações sobre o oriente, de forma que seu funcionamento é inseparável da questão colonial. As três faces do orientalismo atuam juntas numa rede inextricável de produção de conhecimento e representação, numa lógica que tem por finalidade a dominação imperial. A divisão entre ocidente e oriente é uma categoria pela qual os estudos orientalistas se baseiam, mas um dos lados tem o poder de definir a realidade de como o ocidente e o oriente devem ser: orientalismo é uma visão política da realidade cuja estrutura promove a diferença entre o familiar (europeu, ocidental, nós) e o estranho (oriental, oriente, eles) (Said, 2008). Dessa maneira, um dos efeitos da mundanidade do Orientalismo é definir a superioridade do mundo ocidental, nomeadamente da Europa em relação a esses povos.
Ao comentar o Orientalismo norte-americano ou as versões modernas do Orientalismo, Said aponta que era de se esperar que as análises fossem mais sofisticadas ou que a possibilidade de conhecer o Oriente por meio da Internet ou outros meios ajudasse a construir uma visão menos dissonante sobre o Islã, porém não foi o que aconteceu. O Orientalismo como visão de mundo é um discurso tão forte que qualquer conhecimento sobre o Oriente parece só se dar por meio dele e mesmo experiências objetivas de contato são incapazes de desmontar esse edifício colonial que coloca o Islã como um lugar atrasado, com pessoas atrasadas, parado no tempo.
É nesse sentido que o discurso é, ele mesmo, a produção da realidade, a visão de mundo que se dá a conhecer, com parâmetros tão rígidos a respeito das informações relevantes, das formas como se pode conhecer o Oriente e as representações que constituem essa realidade que, mesmo para um Palestino ou um Sírio ou um Magrebino, este discurso tem tal força que passa a ser uma explicação plausível até para o oriental, que passa a enxergar seu mundo como atrasado e passa a desejar os valores eurocêntricos.
Ao articular o Orientalismo como disciplina, forma de pensar e instituição colonial, Said reúne conhecimento, crítica e política em um mesmo empreendimento.
3. A Palestina é uma causa ingrata
O fato de Said ter construído sua carreira como crítico de arte e professor de literatura comparada não o eximiu de falar sobre a Palestina para o público norte-americano e, em última instância, para todo o Ocidente.
Para ele, o conflito árabe-israelense, é a grande causa mal resolvida do século XX, e a que parece estar cada vez mais longe de ter um fim. A Questão da Palestina, livro que sucedeu o Orientalismo, foi publicado em 1979 e passou por uma atualização do autor no prefácio à edição de 1992. Seu objetivo é mostrar uma contra-história da formação do Estado de Israel que torna visível o povo palestino e busca construir uma narrativa de resistência sobre a percepção ocidental, principalmente, norte-americana, sobre o Islã.
Para fazê-lo, primeiramente, Said argumenta que para dar visibilidade à causa palestina era preciso narrar o conflito árabe-israelense a partir do povo palestino, que foi e tem sido expulso de suas terras desde 1947 e a autoproclamação do Estado de Israel em 1948, o que levou a dois processos: à fuga de mais de dois terços da população na época para países do mundo árabe, Europa, Austrália e América do Norte, o que soma, hoje em dia, 7,5 milhões de palestinos em situação de diáspora. Os que permaneceram em suas terras estão imersos em uma guerra em que a proporção de mortes é 8 palestinos para cada israelense e vivem, cotidianamente, o dilema da diáspora pela possibilidade de ter suas terras tomadas por Israel ou a vida em situação de autonomia limitada. Para o autor, a forma como o conflito é tratado pelo Ocidente é uma manifestação do Orientalismo, que contrapõe Ocidente (judeus) e Oriente (árabes), por isso, é possível entender a ocupação da Palestina como uma ocupação colonial.
A estratégia do Sionismo foi deslocar a questão da ocupação das terras do Oriente Médio para o Ocidente, onde os palestinos tinham pouquíssima representação e não poderiam interceder por eles mesmos nas negociações. O sionismo criou uma ideia de missão de ocupação ao afirmar que o povo palestino não existia, ou que as terras eram esparsamente ocupadas, argumentando a favor de uma missão civilizatória de dominar e subjugar o povo árabe. Ao mesmo tempo, em um contexto pós segunda guerra mundial, qualquer voz que se levantava contra os judeus corria o risco de ser taxada de anti-semita. Nesse sentido, Said argumenta que o povo palestino é a vítima da vítima: as vítimas das vítimas do Holocausto.
O sucesso dos sionistas, para Said, deveu-se à sua habilidade de ocupar um espaço em que poderiam representar e explicar os árabes para o Ocidente. A construção sobre o árabe que foi representada pelos orientalistas do século XIX foi então substituída pela perspectiva do discurso sionista sobre eles. O sionismo então precisa ser visto não como uma libertação do povo judeu mas uma ideologia imperialista que busca colonizar territórios no oriente.
4. Falar a verdade ao poder – o papel do intelectual
Para Said, a tarefa do intelectual é falar a verdade ao poder (speak truth to power), para isso, denunciava as exageradas especializações da crítica, em nome de um Humanismo que pudesse dar conta do texto e do contexto, do discurso e de suas condições materiais. Como um exilado, acreditava que o intelectual deveria experimentar a condição do exílio, porque só quando acaba o amor a um lugar especial acaba-se por amar o mundo todo. Para falar a verdade ao poder, é preciso abraçar um humanismo a favor da luta com aqueles que sofrem sem ter a nacionalidade como um particularismo confortável. Mesmo palestino, não tomava partidos, compreendia a situação miserável dos dois lados e desejava um lugar em que o Orientalismo como preconceito fosse abandonado em nome de uma convivência multicultural.
Se dizer o mundo é representá-lo e se representação é discurso, é impossível isentar um texto de sua responsabilidade de se filiar a uma visão de mundo particular e todas as suas consequências: os seus valores, os seus silenciamentos, as suas violências simbólicas e epistêmicas.
Para Said o papel do intelectual nunca é o da tolerância gregária em relação ao estado das coisas, mas de oposição por natureza. A crítica é pessoal, ativa, comprometida com o mundo, legitimamente comprometida com os processos de representação e da ideia quase desaparecida de um intelectual, que pela operação da oposição, espírito crítico, pode revelar a hipocrisia, desvelar o falso e preparar o terreno para a mudança (Aschcroft e Ahluwalia, 2008:30).
Edward Said é um Mestre do Mundo pelo seu esforço em não dissociar a vida pessoal, do trabalho intelectual e do ativismo político. Em unir o seu seu trabalho como crítico e sua origem palestina dentro do projeto político maior de falar a verdade ao poder. Ele situa o seu trabalho em um mundo real para denunciar o silenciamento do povo palestino e seu apagamento da História. Compreende o seu trabalho como um compromisso mundano, o de elaborar uma teoria que fizesse parte do mundo concreto, com uma razão e história particulares.
Edward Said fez ver as articulações profundas entre a cultura e a política. Entre o projeto colonial e os diversos imperialismos dos quais este mundo é refém. Sua obra é o ponto de partida de pensadores do Sul e do Norte global que buscam compreender o legado profundo do colonialismo nas cartografias do poder mundo afora.
Fernanda Belizário é Doutora em Pós Colonialismos e Cidadania Global pelo Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.
Referências
Said, Edward (1992), The question of Palestine, (New York: Vintage Books) xlv, 273.
Said, Edward W. (2008), Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente, São Paulo: Companhia de Bolso.
Said, Edward (2012), On Orientalism: interview with Edward Said, [online video], 2012, http://www.youtube.com/watch?v=fVC8EYd_Z_g
Ashcroft, Bill and Pal Ahluwalia (2008), Edward Said (Routledge Critical Thinkers), (3rd edn., London: Routledge) 2008.
Como citar
Belizário, Fernanda (2019), "Edward Said", Mestras e Mestres do Mundo: Coragem e Sabedoria. Consultado a 04.11.24, em https://epistemologiasdosul.ces.uc.pt/mestrxs/?id=27696&pag=23918&id_lingua=1&entry=32779. ISBN: 978-989-8847-08-9