pt
Opinião
Entrevista com Bruno Sena Martins: Memória; Resistência; Temperança; Sul; Revoluções
Bruno Sena Martins, Sheila Khan, Orquídea Moreira Ribeiro
Revista de Letras, série III, n.º4 – Nov. de 2022 – Ciências da Cultura: 97-106
2022-11-30

ENTREVISTA COM BRUNO SENA MARTINS:MEMÓRIA; RESISTÊNCIA; TEMPERANÇA; SUL; REVOLUÇÕES
Orquídea Moreira Ribeiro (UTAD / CECS)
Sheila Pereira Khan (UTAD / CECS)

Esta entrevista no âmbito do dossier temático, Da Pós-memória à Escrita e Voz Reparativas: Contextos, Diálogos, Novos Horizontes, da Revista de Letras da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, teve como convidado o investigador Bruno Sena Martins, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. No seu percurso, Bruno Sena Martins tem-se dedicado a vários temas, entre eles o corpo, deficiência, direitos humanos, racismo e colonialismo. Mas, o que se destaca do seu compromisso como investigador é, sobretudo, um cidadão ativo e participativo nos vários contextos sociais, históricos, políticos e culturais que contribuem para o seu pensamento
crítico quer ao nível da academia, quer ao nível da sociedade civil. Dos váriosprojetos de investigação que compõem o seu currículo, destacam-se: ALICE– “Espelhos estranhos, lições imprevistas: definindo para a Europa um novo modo de partilhar as experiências do mundo”; “Intimidade e Deficiência:cidadania sexual e reprodutiva de mulheres com deficiência em Portugal”;“Alianças secretas e mapas imaginados: a Guerra Colonial Portuguesa no xadrez da África Austral”; “MEMOIRS – Children of Empires and European Postmemories”; CROME Memórias cruzadas, políticas do silêncio: as guerras coloniais e de libertação em tempos pós-coloniais”; e mais, recentemente,
KINDER: Tackling gender stereotypes in education and early childhood: building a Gender-Responsive Pedagogy in Children’s Education”. A lista da sua participação em projetos de cariz nacional e internacional é exaustiva e merecedora de atenção. Entre as suas várias publicações entre livros e artigos destacam-se alguns títulos: “E se Eu Fosse Cego?»: narrativas silenciadas da deficiência (2006); Sentido Sul: a cegueira no espírito do lugar (2013); As Guerras de Libertação e os Sonhos Coloniais: alianças secretas, mapas imaginados (com Paula Meneses, 2013); As Voltas do Passado: a guerra colonial e as lutas de libertação (com Miguel Cardina, 2018); O pluriverso dos direitos humanos. A diversidade das lutas pela dignidade (com Boaventura de Sousa Santos, 2019); “Violência colonial e testemunho: Para uma memória pós-abissal” (2015); “Racismo, identidades, práticas de diferenciação. As memórias pós-coloniais e a construção da diferença racial” (2021).
Esta entrevista com Bruno Sena Martins é para nós, coordenadores deste dossier temático, uma oportunidade para falarmos, escutarmos e aprendermos com uma das vozes mais singulares e dedicadas ao estudo da memória, das identidades, dos legados coloniais no espaço dos processos de racialização no quotidiano das atuais sociedades europeias pós-coloniais.

* * *

De que forma a sua biografia vai ao encontro dos temas que vem abordando ao longo do seu percurso académico?
Eu comecei o meu trabalho académico no campo dos estudos da deficiência. Na verdade, trata-se de uma área com a qual eu não tinha uma especial afinidade biográfica, foi um interesse de investigação que surgiu através da cegueira que foi a minha tese de mestrado e de doutoramento. É a partir dos Estudos da Deficiência que me aproximo do tema do colonialismo, da memória colonial e do racismo, quando começo a fazer um trabalho sobre os deficientes de guerra, os deficientes das Forças Armadas, analisando as histórias dos veteranos de guerra, tanto em Portugal como em Moçambique. Esse cruzamento aproxima-me do colonialismo, da violência colonial, da memória colonial e do racismo, dos patrimónios constituídos nos antigos impérios sobre aquilo que é o seu passado colonial. Este tema acaba por ter um forte vínculo com aquilo que é a minha história pessoal e a minha história familiar. Para alguém como eu, negro (identificado socialmente como mulato), filho de uma guineense e de um cabo-verdiano, enfrentando toda a vida as feridas impostas pelo racismo quotidiano, com uma história familiar marcada pela luta anticolonial, ao longo de décadas observei com perplexidade permanência de um senso comum que tantas celebra os valores europeus, o glorioso passado imperial de Portugal e que vê no antirracismo uma distração da luta anticapitalista. Numa sociedade cuja representação e bem-estar económico assentou em hierarquias raciais, poucos anos após uma guerra colonial perdida que conduziria a uma descolonização, os ressentimentos históricos da nostalgia imperial e as violências do racismo marcaram de forma indelével sobretudo a minha infância e adolescência. Falo, primeiro, do racismo agressivo e confrontacional, presente nas frequentes injúrias vindas de estranhos ou de amigos próximos em momentos de conflitualidade: “vai para a tua terra”, “preto da guiné, lava a cara com café”. Durante muito tempo, joguei futebol entre pavilhões e pelados, em clubes da cidade e da província (não era suficientemente bom para relvados naturais e os sintéticos vieram tarde, com lesões musculares). Pois bem, cada vez que entrava em campo, sabia que aos olhos do público adversário eu deixaria de ser mais um jogador entretido nos bailados do jogo e que passaria a ser o afamado “preto da guiné”, o tal que deve ir para a sua terra, logo que reclamasse uma falta, que me permitisse a uma entrada mais dura ou – escândalo – que festejasse efusivamente um golo. Uma troca de palavras mais acesa com um colega de equipa poderia ser o suficiente para o racismo entrar no nosso balneário. Falo, em segundo, de um racismo condescendente, aquele que normalmente era traduzido na frase daqueles que me eram próximos com a perversa elegia; “mas tu és quase branco”, “tu és preto, mas és bom aluno”. Era como se me quisessem convencer que sob um conjunto de circunstâncias em eu poderia circular sem que raça fosse uma questão maior, um discurso que sempre me repugnou por o saber falacioso, por ser contrário ao orgulho que fui desenvolvendo na minha afrodescendência, e por saber que nessa condescendência não era extensível, por exemplo, à minha mãe ou a minha avó, mais escuras que e, logo, menos elegíveis pela ideologia meritocrática assimilacionista.

Recentemente, afirmou que o trabalho da memória, isto é, da contramemória que espelham as lutas dos sujeitos racializados no Ocidente, passo a citar, “colidem, sem apelo, com os mundos de sentidos velados
pela continuada hegemonia de que poderíamos chamar memória eurocêntrica”. Em que caminhos estamos, neste momento, no que diz respeito a estas lutas?

A memória eurocêntrica como a formulo aí é uma memória que >LER ENTREVISTA COMPLETA



Conteúdo Original por Revista de Letras, série III, n.º4 – Nov. de 2022 – Ciências da Cultura: 97-106